70 anos de TV no Brasil: 10 novelas que revolucionaram o gênero

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José Wilker (Roque) em Roque Santeiro; Gloria Pires (Maria de Fátima) em Vale Tudo, duas das novelas que revolucionaram o gênero (Imagens: Nelson Di Rago – Bazilio Calazans / Globo)

70 anos de TV no Brasil e muitas, muitas novelas… Títulos que fizeram o país parar, por suas tramas, personagens, direção, debates, beijos, vilanias… Quando, em conversas com os redatores do RD1, fui incumbido de listar 10 folhetins que revolucionaram o gênero, gelei. Para chegar a tais produções, é preciso considerar o que a história diz, o que o público espera e até o que a memória afetiva insiste em acreditar. Por isto, na coluna abaixo, busquei ir além da mera seleção… Espero que esse “painel” da teledramaturgia brasileira sintetize a grandeza e a importância das novelas para a nossa TV.

Histórico

O gênero novela estreou no ano seguinte à chegada da TV no Brasil. Sua Vida me Pertence (Tupi, 1951) foi escrita, dirigida e protagonizada por Walter Foster. Foi ele quem propôs transformar a radionovela em produto televisivo – e quem deu o primeiro beijo técnico, em Vida Alves, de nossas tramas. Os folhetins ganharam importância, conquistaram patrocinadores… Em 1963, na Excelsior, Glória Menezes e Tarcísio Meira protagonizaram a primeira novela diária da televisão brasileira, 2-5499 Ocupado – rebatizada pela Record de Louca Paixão (1999), com Karina Barum e Maurício Mattar nos papéis principais.

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Nathalia Timberg (Maria Helena) e Isaura Bruno (Mamãe Dolores) em O Direito de Nascer (Imagem: Reprodução / O Globo)

O Direito de Nascer (Tupi – TV Rio, 1964)

As novelas brasileiras eram baseadas em textos importados. Duas delas, Alma Cigana (Tupi) e A Moça Que Veio de Longe (Excelsior) mobilizaram o público, ainda parco, da então jovenzinha televisão. Em 7 de dezembro de 1964, a Tupi lançou O Direito de Nascer, primeiro grande fenômeno de massa da TV no Brasil. O original de Félix Caignet já havia pintado por aqui através do rádio. Foi adquirido por Boni e Walter Clark numa transação incomum: o autor cubano quis receber em dinheiro vivo, levado para o México dentro do casaco de peles da portadora Dercy Gonçalves. A Record, primeira estação para qual o projeto foi oferecido, não se interessou.

Em um tempo no qual não tínhamos rede nacional, a Tupi de São Paulo produziu e exibiu, mas a do Rio de Janeiro deixou a incumbência para a TV Rio. O Direito de Nascer chegou ao fim com festa no Ginásio do Ibirapuera (SP), no Maracanãzinho (RJ) e no Mineirão (BH)! O enredo centrado em Maria Helena (Nathalia Timberg), mãe solteira convertida em freira, sempre amparada por Mamãe Dolores (Isaura Bruno) – que salva o bebê da sentença de morte dada pelo avô –, transformou protagonistas em celebridades, a ponto de Guy Loup adotar como nome artístico o de sua personagem, Isabel Cristina. Um clássico, revisitado em 1978 e 2001 (Tupi e SBT).

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Luiz Gustavo (Beto) e Plinio Marcos (Vitório) em Beto Rockfeller (Imagem: Reprodução / O Globo)

Beto Rockfeller (Tupi, 1968)

Autores como Benedito Ruy Barbosa, Ivani Ribeiro e Lauro César Muniz buscavam alinhar as novelas à realidade do Brasil, então asfixiado pelo regime militar. Em 1966, Raimundo Lopes deu início à “saga” Redenção; até hoje, a mais longa trama da TV brasileira, 596 capítulos. O tom “dramalhão”, contudo, ainda dominava. Coube a Beto Rockfeller romper tal barreira! A partir do título idealizado pelo diretor artístico da Tupi, Cassiano Gabus Mendes, com texto do teatrólogo Bráulio Pedroso e direção de Lima Duarte, todas as produções, de todos os canais, foram “obrigadas” a olhar para o telespectador, para seus hábitos, desejos e anseios…

Beto Rockfeller levou para a TV a linguagem das ruas. Tornou ainda mais populares canções de sucesso de Luiz Melodia, Erasmo Carlos, Bee Gees e Beatles inseridas na trilha sonora – não lançada comercialmente. Introduziu o merchandising, numa ação “marota” do protagonista Luiz Gustavo, negociada diretamente com o fabricante do Engov, famoso remédio contra ressaca. Em cena, o bicão Beto Rockfeller, modesto vendedor de sapatos que, com jeitinho, infiltra-se na sociedade paulistana, dividindo-se entre a namorada suburbana Cida (Ana Rosa) e a ricaça Lu (Débora Duarte).

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Tarcísio Meira (João) em Irmãos Coragem (Imagem: Divulgação / Globo)

Irmãos Coragem (Globo, 1970)

A concorrência causou a demissão de Glória Magadan, bem como o fim das narrativas capa-e-espada, da Globo. Janete Clair foi promovida ao posto máximo da casa, o de autora da novela das oito. A revolução de Beto Rockfeller na Tupi se deu na até hoje emissora-líder com Véu de Noiva (1969). Enquanto isso, Dias Gomes – esposo de Janete – buscava introduzir temas espinhosos nas novelas das dez, como o divórcio em Verão Vermelho (1969) e o celibato em Assim na Terra Como no Céu (1969). Faltava, porém, conquistar o público masculino… Tal tarefa coube a Janete, mesclando bang-bang, futebol e política.

Meses atrás, ouvi de um senhor, já idoso, que Irmãos Coragem fez o dono da fazenda em que ele vivia liberar a energia elétrica até mais tarde, para que os colonos se reunissem num galpão onde assistiam Irmãos Coragem. O Brasil inteiro se curvou à luta de João (Tarcísio Meira), Jerônimo (Cláudio Cavalcanti) e Duda (Cláudio Marzo) por melhores condições para eles e para o povo que vivia sob o julgo do Coronel Pedro Barros (Gilberto Martinho). Glória Menezes, em papel triplo, atingiu a consagração. Os capítulos da trama emplacaram índices de audiência superiores ao da final da Copa do Mundo de 1970, que rendeu o Tri à Seleção Brasileira.

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Francisco Cuoco (Carlão) em Pecado Capital (Imagem: Divulgação / Globo)

Pecado Capital (Globo, 1975)

A mesma Janete Clair chegou a 100% de aparelhos de TV sintonizados num capítulo de novela, o 152 de Selva de Pedra (1972). Dias Gomes, por sua vez, assinou o primeiro título gravado em cores, O Bem-Amado (1973). Através da sátira, o autor desnudou os meandros da política, meio onde dominam tipos oportunistas e interesseiros como o lendário Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo). Na Tupi, Ivani Ribeiro respondia pelos melhores números e por folhetins icônicos – Mulheres de Areia (1973), Os Inocentes (1974), A Barba Azul (1974). Em 1975, destaque para Gabriela, às 22h, e para a consolidação da faixa das seis…

Neste ano, a Globo buscava reformular a grade, adiantando as discussões das 22h. Dias Gomes foi convidado para assumir o horário pós-Jornal Nacional, com Roque Santeiro. Janete, em contrapartida, “caiu” para às 19h, onde escreveu, em parceria com Gilberto Braga, a melodramática Bravo!. A Censura da ditadura militar proibiu ‘Roque’ no dia da estreia; em tempo recorde, Janete implantou Pecado Capital. As mazelas urbanas ganharam espaço na ficção, começando pelo taxista Carlão (Francisco Cuoco), confrontado pela moralidade e pelo apego ao dinheiro, produto de um assalto, esquecido no banco de trás de seu veículo…

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Lucélia Santos (Isaura) em Escrava Isaura (Imagem: Divulgação / Globo)

Escrava Isaura (Globo, 1976)

O realismo mágico de Saramandaia (22h), a narrativa em três tempos de O Casarão (20h), a arrivista Nice (Susana Vieira) de Anjo Mau (19h) e reconstituição de tempos não muitos distantes em Estúpido Cupido (também 19h) contrastavam com os clássicos que a Globo exibia às 18h – numa época em que a estação começava a reinar praticamente sozinha quando o assunto era novela, dado os sinais de desgaste da Tupi e o desinteresse das demais concorrentes no gênero. O horário das seis trazia adaptações de obras assinadas por Machado de Assis (Helena, 1975), José de Alencar (Senhora, 1975), Orígenes Lessa (O Feijão e o Sonho, 1976)…

A versão para a TV de Escrava Isaura impulsionou as vendas do livro de Bernardo Guimarães. Também tornou conhecido o talento de Lucélia Santos, certamente a atriz brasileira de maior sucesso no exterior… O mercado internacional, que já consumia folhetins da Globo, curvou-se à cativa de Leôncio (Rubens de Falco), que ansiava por liberdade, driblando de todas as formas as investidas sexuais e violentas de seu senhor. Há anos, ‘Isaura’ deixou de ser a produção mais bem-sucedida da Globo no quesito vendas – honraria que cabe a Avenida Brasil (2012). A Record, cabe lembrar, recorreu à obra em 2004, ao retomar o investimento em teledramaturgia.

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Fernanda Montenegro (Charlô) e Paulo Autran (Otávio) em Guerra dos Sexos (Imagem: Divulgação / Globo)

Guerra dos Sexos (Globo, 1983)

Nos anos 1970, a faixa das sete apostava alto em comédias românticas. Regina Duarte, inclusive, recebeu a alcunha “namoradinha do Brasil” por conta de seu trabalho em Minha Doce Namorada (1971). Cassiano Gabus Mendes deu certo gás ao horário com Anjo Mau. A produção sofisticada, aliada às narrativas repletas de romances em todas as idades, humor refinado e mistérios, fez o êxito de Locomotivas (1977) – fenômeno do consumismo, tal qual Dancin’ Days (1978) –, Marron-Glacé (1979) e Plumas & Paetês (1980). Em 1981, uma ousadia de Silvio de Abreu: Jogo da Vida, argumento dramático de Janete Clair transformado em comédia pastelão.

O resultado obtido levou a Globo à aposta em Guerra dos Sexos. Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Glória Menezes, Tarcísio Meira e outros tantos monstros sagrados passaram a vivenciar situações inusitadas – e hilariantes – e dialogar com o público, “quebrando a quarta parede”. Descobriu-se então a fórmula que fez a fama dos títulos das sete na década de 1980; alguns, com índices superiores aos das oito: Vereda Tropical (1984), Tititi (1985), Cambalacho (1986), Brega & Chique (1987). Outras experimentações se deram em 1989: Que Rei Sou Eu?, que espelhou o Brasil de então no fictício Reino de Avilan, e Top Model, focada no público infanto-juvenil.

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Regina Duarte (Porcina) e Lima Duarte (Sinhozinho Malta) em Roque Santeiro (Imagem: Nelson Di Rago / Globo)

Roque Santeiro (Globo, 1985)

Os sucessos às 19h coincidiram com apostas infrutíferas da Globo às 20h – casos de Champagne (1983), tentativa de implantar o estilo Cassiano Gabus Mendes no horário “mais nobre”, e Partido Alto (1984), malsucedida parceria dos então novatos Aguinaldo Silva e Glória Perez. Aguinaldo, “pai” das minisséries, formato lançado em 1982, foi convidado por Dias Gomes para dividir com ele os capítulos de Roque Santeiro. Em tempos de abertura política, com a eleição de Tancredo Neves, primeiro presidente civil desde o início do regime militar (1964), a Globo achou por bem produzir, enfim, o texto censurado no auge da repressão.

Asa Branca, lugarejo que abrigou a história de Roque Santeiro (José Wilker) e da viúva que foi sem nunca ter sido, Porcina (Regina Duarte), nada mais era do que um microcosmo do Brasil, onde os poderosos insistiam em farsas e mitos capazes de manter o povo, incauto, sob a tirania deles… A proposta se refletia, inclusive, nos muitos sotaques do elenco – opção do diretor-geral Paulo Ubiratan, de não implantar um “denominador comum” quanto à sonoridade do povo da cidadezinha. Roque Santeiro alcançou índices de audiência nunca vistos até então; uma obra onde tudo funcionou, de autores ao elenco, da trilha ao contexto histórico…

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Beatriz Segall (Odete Roitman) e Carlos Alberto Riccelli (César) em Vale Tudo (Imagem: Bazilio Calazans / Globo)

Vale Tudo (Globo, 1988)

Aguinaldo Silva voltou a falar de Brasil em Vale Tudo. O pai da ideia, aqui, era Gilberto Braga: numa discussão familiar, o novelista reagiu assustado ao ver um parente ser tachado de babaca por negar-se a ascender socialmente através de suborno. Juntos com Leonor Bassères, Aguinaldo e Gilberto engendraram a mais atual de todas as novelas. As discussões de Vale Tudo não envelheceram um milímetro, da exibição original à chegada ao Globoplay, semanas atrás. O país não mudou ou a obra foi tão perfeita na captação do espírito da nação, a ponto de refletir seu público independente de governos, moedas e evolução?

O país, até então, era debatido na ficção através de representações, sempre satíricas. Vale Tudo concluiu o avanço de Roda de Fogo, clássico de Lauro César Muniz exibido às 20h, dois anos antes. Lauro, aliás, substituiu o folhetim de Aguinaldo, Gilberto e Leonor. O Salvador da Pátria (1989) trazia a política nua e crua, a partir do plano de Severo Blanco (Francisco Cuoco) de levar o bem-intencionado Sassá Mutema (Lima Duarte) à Presidência da República, se possível fosse, para facilitar suas investidas criminosas. A abordagem tinha razão de ser: o telespectador precisava entender os pormenores deste meio para a primeira eleição direta após anos de ditadura…

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Cristiana Oliveira (Juma Marruá) em Pantanal (Imagem: Divulgação / Manchete)

Pantanal (Manchete, 1990)

A primeira novela exibida após a extinção, por completo, da censura foi Tieta (1989). Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares simbolizaram este novo tempo na cena em que Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos), após expulsar a filha Tieta (Claudia Ohana / Betty Faria) de Santana do Agreste, rasga o calendário – 13 de dezembro de 1968, quando decretado o Ato Institucional – 5, que endureceu o regime militar. A sensualidade dominou o enredo; as externas idem. A substituta, por sua vez, situou seus capítulos na claustrofóbica São Paulo; Rainha da Sucata (1990) também exaltou o humor escrachado – e enfrentou problemas por isso.

Já Pantanal, que Benedito Ruy Barbosa propôs para a Globo, mas só conseguiu realizar na Manchete, expandiu os feitos de Tieta. A nudez condizia com os banhos de rio; a beleza do cenário natural justificava longas tomadas contemplativas… A glória da concorrente levou a emissora-líder a apostar, nos anos seguintes, em projetos semelhantes – como Pedra Sobre Pedra (1992) e Renascer (1993). A Manchete, cabe destacar, fez história com sua ousadia: de Maitê Proença cavalgando nua, enquanto protagonista de Dona Beija (1986), à novela-reportagem Corpo Santo (1987), que mergulhou no submundo do crime.

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Débora Falabella (Nina) e Adriana Esteves (Carminha) em Avenida Brasil (Imagem: Estevam Avellar / Globo)

Avenida Brasil (Globo, 2012)

A última década do século 20 e a primeira do 21 reforçaram a função social das novelas. Gloria Perez abordou o transplante de órgãos em De Corpo e Alma (1992), as crianças desaparecidas em Explode Coração (1995) e a dependência química em O Clone (2001). Em O Rei do Gado (1996), Benedito Ruy Barbosa debateu a reforma agrária. Manoel Carlos trouxe a doação de medula em Laços de Família (2000); o alcoolismo, o celibato, a homossexualidade, os maus-tratos a idosos, a violência doméstica e urbana em Mulheres Apaixonadas (2003). A sociedade, com o avanço da internet, também moldou o folhetim…

Avenida Brasil instaurou um novo jeito de consumir novela. As redes sociais reagiam, em polvorosa, a cada “#OiOiOi” da abertura. O folhetim não trouxe absolutamente nada de novo – a velha história da enteada, Nina (Débora Falabella), que busca vingar-se da madrasta, Carminha (Adriana Esteves). Mas, no entorno, estava a então ascendente classe C, que se via na tela e repercutia tal conteúdo em outras tantas telas… ‘Avenida’, de João Emanuel Carneiro, deu gás até ao velho recurso do congelamento. O primeiro grande fenômeno da teledramaturgia brasileira neste ainda novo momento do audiovisual.

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Duh SeccoDuh Secco
Duh Secco é  "telemaníaco" desde criancinha. Em 2014, criou o blog Vivo no Viva, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.