Há exatamente um ano, Marcílio Moraes deixava a dramaturgia Record após uma série de desentendimentos com a direção da emissora. Os anos ricos e promissores, dos quais ele teve liberdade total de criação e se tornou um dos nomes mais expressivos fora da Globo, se tornaram frustrantes, nas palavras do próprio autor, que aceitou fazer um balanço de sua carreira e bater um papo sobre TV nesta entrevista exclusiva ao RD1.
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Autor de obras inovadoras como Vidas Opostas (2006), A Lei e o Crime (2009) e Plano Alto (2014), Marcílio detalhou na conversa os momentos de crise que motivaram a sua saída no canal dos bispos, que aconteceram antes mesmo da chegada de Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo, à supervisão de novelas e minisséries, e observou uma decadência na dramaturgia atual da emissora. “Com a interferência da Igreja ou de quem quer que seja é impossível desenvolver dramaturgia de qualidade”, opinou.
Enquanto produz um documentário sobre a vida do jurista San Tiago Dantas, um dos principais intelectuais da esquerda nos anos 60, Marcílio revela o desejo de escrever sobre o cenário atual do país, embora reconheça que seria criticado pelas duas vertentes da política. Em Ribeirão do Tempo (2010), ele chegou a admitir que Ari Jumento, o personagem anti-intelectual, populista e chegado na cachaça de André De Biase, era inspirado em lideranças de esquerda, inclusive no ex-presidente Lula.
Moraes também comentou sobre a glamourização do crime nas novelas, citando a abordagem das milícias da novela Duas Caras (2007), da Globo, como influenciadora para a expansão destes tipos de crimes na política e na sociedade: “Um horror”. Há 2 anos, o delegado Cláudio Ferraz, conhecido como o caçador das milícias no Rio de Janeiro, também culpou a trama de Aguinaldo Silva pela aceitação dos milicianos entre a população, ao comentar a morte da vereadora Marielle Franco.
Confira a entrevista na íntegra:
RD1 – Em 2017, você expôs interferências da direção da Record na dramaturgia e as dificuldades para emplacar projetos que não fossem bíblicos. Foi neste momento que você entendeu que não conseguiria mais “sobreviver” na emissora?
Marcílio Moraes – Antes de tudo, devo declarar meu reconhecimento à Record, que me possibilitou realizar obras que eu não conseguiria emplacar em outro lugar e que me trouxeram grande sucesso. A Record dos primeiros anos em que estive lá, bem entendido, de 2005 a 2014, porque depois foi uma total frustração.
Até 2014, eu apresentava meus projetos e a direção aprovava ou não, como deve ser. Foi baseado nesta prática que, em 2015, renovei o contrato por mais cinco anos. Mas aí os procedimentos mudaram, queriam que eu desenvolvesse os projetos que saíam da cabeça deles. O primeiro foi Dona Xepa. Eu achei que não tinha o menor sentido refazer Dona Xepa e me recusei. A partir daí, o relacionamento com a direção da empresa ficou complicado: o que eu queria fazer eles não aprovavam e o que eles queriam que eu fizesse eu não fazia. Além disso, ainda surgiu a figura de uma “supervisora de texto”, com poder de interferir e reescrever o trabalho dos autores. Não havia mais espaço para mim.
RD1 – Apesar das interferências recentes na dramaturgia da Record, você teve bastante liberdade artística durante muitos anos e provavelmente escreveu novelas que nunca seriam feitas pela Globo. Como você avalia esse momento da emissora e também de sua carreira?
Marcílio Moraes – Como já disse na resposta anterior, os primeiros anos da retomada da dramaturgia na Record foram muito ricos e promissores. Abriu-se uma alternativa para a dramaturgia da televisão brasileira, até então dominada pela Globo. Embarquei totalmente nesta abertura, tanto como dramaturgo quanto como ativista – à época eu era presidente da Associação dos Roteiristas. A Record teve a chance efetiva de virar o jogo, no sentido de afirmar-se como emissora de peso, alternativa ao império global. Infelizmente, faltou gestão competente e visão de longo prazo. A empresa perdeu-se nas mesquinharias das disputas internas e decisões equivocadas.
Mas para mim, este início de, digamos assim, florescimento foi muito bom. Tive oportunidade de deslanchar minha carreira, exercer meu talento e até abrir caminhos novos para a teledramaturgia.
RD1 – Em 2002, você deixou a Globo por divergências com a direção. A emissora não aceitava seus projetos e, por outro lado, você não queria fazer mais o que fosse proposto. Curioso é que aconteceu o mesmo em sua saída da Record no ano passado. Você se enxergou na mesma situação de 18 anos atrás?
Marcílio Moraes – As situações são parecidas, não exatamente iguais. Lembro que eu propus fazer séries policiais na Globo, para exibição tarde da noite, projetos assim, diferentes da telenovela, mas não havia a menor chance. Era só novela. Também acho que nunca fui um bom administrador da minha carreira, devo admitir. Então, foi-se criando um desgaste e em 2002 a Globo não quis renovar meu contrato. Naquela época, não havia qualquer alternativa fora de lá. Mas o período fora da televisão acabou não sendo ruim: escrevi uma peça, um romance, trabalhei na construção da associação de roteiristas, etc.
Na Record, o desgaste foi mais ou menos o mesmo, só que a decisão de sair foi minha.
RD1 – Você costuma criar histórias mais realistas e já criticou o uso de artifícios clichês da dramaturgia, como personagens que “ressuscitam” e o “quem matou?”. Você acredita que, num contexto geral, as novelas oferecem ao público histórias pouco inteligentes?
Marcílio Moraes – Não diria pouco inteligentes. Os autores são pessoas inteligentes. As histórias é que, por força da maneira como está organizada a televisão brasileira, em geral exigem pouco da inteligência e da sensibilidade dos espectadores. Aí vêm os clichês: noivos ou noivas fugindo do altar, nascimento de bebês, o “quem matou?”, citado por você, jogado do nada no meio da história, etc.
RD1 – Uma de suas novelas mais bem-sucedidas na Record foi Vidas Opostas, que fugiu da estrutura convencional dos folhetins para trazer discussões sobre violência, por meio de confrontos entre a polícia e o tráfico nas favelas. Como observa essa ousadia 14 anos depois? Houve resistência por parte da emissora ou medo de afastar o público na época?
Marcílio Moraes – Não houve qualquer resistência da Record à temática de Vidas Opostas. Lembro que o diretor da empresa na época, Honorilton [Gonçalves, ex-vice presidente artístico da Record], quando apresentei o projeto, me ligou para dizer que eles tinham tido um programa com violência, tráfico, etc, que até conseguia público, mas nenhum anunciante. Respondi que eu ia tratar de favela, violência, tráfico, corrupção, mas dentro das regras da boa ficção novelesca, sem perder de vista o sonho, a identificação do público com os personagens, etc. Ele entendeu e fomos em frente. Desde o primeiro momento, o público embarcou na novela e trouxe os anunciantes.
RD1 – Uma das boas qualidades de Vidas Opostas é a ausência de estereótipos na construção dos personagens favelados. Como é o seu trabalho de pesquisa para fugir deste senso comum?
Marcílio Moraes – Pode ser pretensão da minha parte dizer isto, mas eu conheço o povo brasileiro. Não precisei subir na favela para saber como é, eu sabia, por vivência, por observação, por conversas, por leituras, por identificação e pela imaginação, claro. Sempre fui atento ao povo brasileiro.
Houve alguma pesquisa quanto à linguagem dos traficantes, pouca, porque boa parte dos atores tinha origem no morro. Eles metiam cacos que nem eu nem minha equipe jamais poderíamos imaginar. O estereótipo dos favelados na TV vem da posição dramática em que costumavam ser colocados na novela: apenas como núcleo cômico ou folclórico ou como bandidos.
RD1 – Em 2007, quase um ano após a estreia de Vidas Opostas, a Globo exibiu uma novela com temática semelhante à do seu folhetim no horário nobre, Duas Caras. Porém, você fez críticas à trama por retratar personagens milicianos com características de heróis. Existe um cuidado nos seus trabalhos para não glamourizar o crime?
Marcílio Moraes – Antes de tudo, quero esclarecer que o conflito dramático nuclear de Vidas Opostas não era a violência entre policiais e traficantes. Era o conflito entre a delicadeza e a truculência. Os protagonistas, em torno dos quais a novela se estruturava, eram delicados, gentis, pacíficos, o Miguel e a Joana, oprimidos pela violência de uma sociedade dividida.
Já a novela da Globo a que você se refere glamourizava exatamente o setor mais criminoso da sociedade: as milícias. Um horror. Certamente contribuiu para o crescimento desses grupos que atualmente ameaçam a democracia.
Tenho todo o cuidado em não glamourizar o crime. Tanto na novela Vidas Opostas quando na série A Lei e o Crime havia clara postura crítica em relação a policiais corruptos, traficantes e milicianos.
RD1 – Existe uma cobrança no mundo todo para maior representatividade nos elencos e também nos roteiros de séries e novelas. Como você avalia esse movimento?
Marcílio Moraes – Olhando de hoje, sob este aspecto (da representatividade), as novelas brasileiras sempre foram uma vergonha. Como produto comercial, tinham que criar identificação com o público consumidor. Quem constitui o público consumidor no Brasil? Brancos de classe média. Negros e favelados não tinham chance, porque não consumiam, sem falar no racismo disfarçado.
Para os favelados, o problema se mantém. No que respeita aos negros e outras etnias geralmente marginalizadas, há hoje forte movimento de conscientização, o que é da maior importância. E dá para ver que surte efeito. Até pouco tempo atrás, não se viam atores e atrizes negros nas novelas que não fossem empregados, subalternos ou folclóricos. Hoje se nota uma mudança.
Neste sentido, Vidas Opostas foi pioneira, rompeu mesmo com os tabus, mostrando que negros, favelados e pobres também podiam estar no horário nobre da televisão, como protagonistas.
RD1 – As reprises de Essas Mulheres, sua primeira novela na Record, e Ribeirão do Tempo, a última, fizeram sucesso entre o público e reverenciaram um momento muito importante na dramaturgia da emissora. Isso te fez questionar o quanto a Record retrocedeu na criatividade de suas produções? É possível surgir histórias tão boas como essas sob as interferências da Igreja Universal?
Marcílio Moraes – Não apenas eu, todo o público pôde avaliar o quanto a Record decaiu em termos de dramaturgia, não só na audiência mas principalmente em prestígio.
Com a interferência da Igreja ou de quem quer que seja é impossível desenvolver dramaturgia de qualidade. A novela é obra de autor. Tirar a autonomia deste é escolher o caminho do fracasso.
RD1 – A série Plano Alto falou sobre política de uma forma muito aberta, deixando claro o posicionamento dos protagonistas e das manifestações históricas que eles participaram – desde luta contra a Ditadura Militar até os Black Blocs. Foi problemático tocar nesse assunto? Hoje em dia, com a polarização política, é mais difícil falar sobre isso?
Marcílio Moraes – Plano Alto foi uma obra extraordinária. Não houve nenhum problema em tocar em temas políticos graves. Tive inteira liberdade de criação e consegui desenvolver um trabalho melhor do que eu próprio podia imaginar. Foi meu último suspiro na Record.
Eu poderia tranquilamente fazer uma segunda temporada de Plano Alto com os elementos da política atual. Provavelmente, desagradaria os dois lados, como de resto Plano Alto desagradou os dois polos políticos daquele momento. Que se danem. Seria uma obra de grande potência dramática. Por infelicidade, as cabeças que decidem o audiovisual brasileiro não percebem tal evidência.
RD1 – Você trabalhou com Regina Duarte em Roque Santeiro e Chiquinha Gonzaga, obras que denunciaram o autoritarismo e o conservadorismo. Foi uma surpresa para você a passagem dela pelo governo Bolsonaro?
Marcílio Moraes – Me surpreendeu no sentido de que ela se mostrou mais ingênua do que eu imaginava. Mas eu não tinha nenhuma expectativa em relação a ela. Acho um equívoco aquele manifesto que a classe artística fez, “Regina não nos representa”. Ninguém que ocupe um cargo no governo Bolsonaro, ou em qualquer governo, me representa. O que a classe artística precisa ter, se quiser se manifestar, é uma carta de princípios e de ações que espera do Estado. E exigir o cumprimento desta carta, seja lá quem for o ministro, secretário ou o que seja. Não é ficar esperando que um “amiguinho” seja nomeado.
RD1 – A novela Sonho Meu nunca foi reprisada no Vale a Pena Ver de Novo, embora tenha feito sucesso em 1993, e também não entrou no catálogo do Globoplay, assim como Mico Preto. Você acredita que foi boicotado pela Globo? Como a emissora considera a sua passagem por lá?
Marcílio Moraes – Sonho Meu foi a segunda maior audiência de novelas das seis na década de noventa. Só perdeu para Mulheres de Areia, da Ivani [Ribeiro]. O público lembra com carinho desta obra. E, no entanto, a Globo não a reprisa. Não sei por que. Não acredito que seja pela bronca que alguns poderosos de lá têm por mim. Não sou tão importante.
Sou amigo de praticamente todo mundo da área artística da Globo. A todo momento encontro alguém que me pergunta quando é que eu volto e tal. Por mim, poderia voltar, numa boa. Sou profissional, não guardo rancores, especialmente de pessoas jurídicas, que não têm coração, como se sabe… (risos).
Desconfio – veja bem, desconfio – que eu faça parte da lista negra que algum imbecil tenha elaborado por lá, em função de entrevistas que eu dei, declarações, etc. Um macarthismo do brejo ou coisa que o valha. Mas a História me resgatará… (risos).
RD1 – E na Record? Como você acredita que a emissora observa atualmente os seus trabalhos por lá, vistos que muitos deles não seriam produzidos, e alguns nem reprisados, nos dias atuais?
Marcílio Moraes – Ouvi dizer que eles criaram uma plataforma de streaming onde minhas obras estão disponíveis. Tenho que conferir isso, aliás. Porque não me pagam direitos autorais por estas exibições. Por sinal, o Canal Viva, da Globo, também não me paga. Em breve serão cobrados, não perdem por esperar.
RD1 – O que tem feito desde que saiu da Record? Quais são os seus projetos atualmente para TV? Ainda pensa em escrever novelas?
Marcílio Moraes – Continuo escrevendo. Tenho vários projetos para a televisão, de minisséries, seriados e mesmo novelas, para os quais estou começando a sondar esse novo mercado que existe por aí, de streaming, Netflix, Amazon, etc. Também estou produzindo um documentário, dirigido pelo Eduardo Quental, sobre o jurista e político da década de sessenta, San Tiago Dantas. Fora isso, estou terminando outro romance e otras cositas más.
Daniel Ribeiro cobre televisão desde 2010. No RD1, ao longo de três passagens, já foi repórter e colunista. Especializado em fotografia, retorna ao site para assinar uma coluna que virou referência enquanto esteve à frente, a Curto-Circuito. Pode ser encontrado no Twitter através do @danielmiede ou no [email protected].