Há 26 anos, a Globo exibia o último capítulo de “De Corpo e Alma”, marcada pelo episódio mais triste da história de sua teledramaturgia: o assassinato de Daniella Perez. Estrela do folhetim, escrito por sua mãe Gloria Perez, Daniella tinha uma carreira promissora, brutalmente interrompida por Guilherme de Pádua, assassino confesso da atriz.
“De Corpo e Alma” povoa o imaginário do público que não a viu, da mesma forma que atordoa os telespectadores que a acompanharam – eu, particularmente, não guardo boas lembranças desta obra. Neste “documento” que resgato aqui hoje, trago dados sobre a pré-produção, a sinopse, os bastidores, a audiência e até uma improvável reprise que a Globo, por pouco, não levou ao ar.
O processo de implantação
Foi graças ao adiamento de “Renascer”, de Benedito Ruy Barbosa, que Gloria Perez retornou à faixa das 20h. Em 1989, após passagem pela Manchete, a autora viu suspensa a produção de “Barriga de Aluguel”, alocada às 18h no ano seguinte. O êxito desta trama foi determinante para a escalação de Gloria, diante dos problemas de produção que culminaram no atraso da obra de Benedito.
Tarcísio Meira, então cotado para viver o fazendeiro José Inocêncio, de “Renascer”, acabou fixado no elenco de “De Corpo e Alma”, como o protagonista Diogo, determinado a reviver o romance clandestino que travara com Betina no passado. A amante, oferecida a Sônia Braga, acabou com Bruna Lombardi, de volta ao vídeo após cinco anos de ausência, par de Tarcísio como no trabalho anterior, “Roda de Fogo” (1986).
Renée de Vielmond também foi cogitada para Betina. E também para Antônia, esposa fiel e abnegada de Diogo – que causou reações controversas nas telespectadoras por conta de sua passividade, num surpreendente desempenho de Betty Faria, acostumada a tipos mais “efusivos”. Renée acabou escalada para Helena, advogada amante de Caíque (José Mayer), irmão de Betina.
Para a protagonista Paloma, foram ventilados os nomes de Giulia Gam e Letícia Sabatella. Cristiana Oliveira, egressa da Manchete, foi quem assumiu o papel. A atriz vinha sendo “assediada” pela Globo há tempos; chegou a ser cotada para Marina Batista, protagonista jovem de “Pedra Sobre Pedra” (a cargo de Adriana Esteves), mas só aceitou a proposta quando veio o convite para “Agosto”.
Cotada para viver Alice na minissérie – que só foi ao ar no ano seguinte, com Vera Fischer na pele da personagem – Cristiana acabou cedida para a trama das 20h. Já José Mayer foi alocado na produção mediante acerto com o núcleo das 19h. Ele era o nome pretendido para o catraieiro Paco, de “Deus Nos Acuda”, trama de Silvio de Abreu, entregue posteriormente a Raul Gazolla.
O conflito paralelo que suplantou o eixo central
Inicialmente intitulada “Clube das Mulheres”, a trama foi rebatizada numa clara referência ao ocorrido com Paloma: ela abandona o noivo Tavinho (Hugo Gross) no altar para se unir a Juca (Victor Fasano), mas é traída pelo destino quando descobre ter uma patologia cardíaca que só um transplante poderá resolver. O órgão provém de Betina, morta em um acidente de carro, após ser abandonada novamente por Diogo.
O desejo de conhecer a família de sua doadora move Paloma, que procura por Caíque. “Não posso compartilhar com você essa felicidade. […] Sua alegria pra mim representa a morte da minha irmã”, sentencia o arquiteto. Do outro lado da história, o ressentido Diogo busca pela mulher que recebeu o coração de sua amada. Paloma, contudo, só cede após descobrir que Juca se despe para moçoilas e senhoras afoitas.
A trama central obteve efeito prático na “realidade”. Na semana de estreia, o Incor (Instituto do Coração) de São Paulo, há meses sem uma única doação, recebeu nove órgãos para transplantes. No vídeo, contudo, o que funcionou foi a troca de bebês que mobilizou Caíque e Bia (Maria Zilda Bethlem), que criaram o filho de Vado (Tonico Pereira) e Terê (Neuza Borges, premiada com o APCA de atriz coadjuvante).
Os conflitos deste núcleo se acentuaram com o divórcio de Caíque e Bia, em razão da desconfiança dele acerca de uma traição. O envolvimento dela com Marco (Norton Nascimento) alimenta a crença do marido de que o filho, Júnior (Aron Hassan), tenha sido concebido fora do casamento. Ele, em contrapartida, se envolve com Helena, que representa Bia no processo de separação.
A disputa pelas crianças – Júnior e Pinguim (Eduardo Caldas) –, com participação de Milton Gonçalves como juiz, acabou por afetar os pequenos. Mimado, Júnior se ressentia por ter de morar na favela com os pais biológicos. Já Pinguim se sentia desconfortável diante do luxo ofertado por Bia e Caíque, sabendo que Terê e Vado não desfrutavam das mesmas condições.
Bons personagens esquecidos pelo tempo
Além do drama das crianças trocadas na maternidade e do juiz com a transplantada – Diogo acabou afastado de suas funções por ferir conceitos éticos de sua profissão – “De Corpo e Alma” destacou também o romance de Simone (Vera Holtz), reprimida pelo marido Guedes (Ewerton de Castro), indo à forra com o stripper Gino (Guilherme Leme) – e internada pelo cônjuge num sanatório por conta de sua “perversão”.
Outras tramas essenciais para o enredo, contudo, acabaram esquecidas pelo público. Vidal (Carlos Vereza) foi o “grande vilão” da novela. Ele servia de “cérebro” para o amontado de músculos Juca, persuadido a seduzir Stella (Beatriz Segall) para vingar o mentor – preso ao se envolver com jogos de azar, tentando enriquecer a mulher a quem era devotado e que o abandonou no cárcere. No final, Vidal se atirou dos Arcos da Lapa.
Aliás, os jogos clandestinos, depois em voga em “A Força do Querer” (também de Gloria Perez) acabaram por levar Antônia à bancarrota. Falidos também estavam os pais de Paloma, Domingos (Stenio Garcia) e Lacy (Marilu Bueno), graças às intervenções de Nágila (Nathalia Timberg). A malvada não aceitava ter sido abandonada por Domingos no passado; nem admitia ver seu filho Tavinho sofrer ao ser rejeitado por Paloma.
As estremecidas relações de Nágila com os Bianchi afetaram o namoro de seu caçula, Caio (Fábio Assunção), com Yasmin (Daniella Perez), irmã de Paloma. A matriarca cruel chegou a interditar o herdeiro, impedindo-o de saldar as dívidas do sogro Domingos, encalacrado por conta da operação de um ônibus pirata, denunciada, claro, por Nágila. Que ainda tentou envenenar a irmã, Calu (Eva Todor), culpando Lacy.
Já o abandonado Tavinho desandou a perseguir mocinhas desavisadas, amarradas, literalmente, por ele em postes e afins.
A ficção devastada pela realidade
O crime que abalou as estruturas da produção, contudo, se deu fora da tela. Na noite de 28 de dezembro de 1992, Guilherme de Pádua, intérprete de Bira, assassinou a colega de elenco Daniella Perez, com a anuência da então esposa, Paula Thomaz. Um site mantido por Gloria traz detalhes do crime e do processo; Guilherme e Paula deixaram a cadeia em 1999, após cumprimento de um terço da pena.
“Escolhido para um papel secundário na novela das 21 horas, onde faria o elemento atrapalhador do romance de Yasmin e Caio, acredita que suas chances de sobrepujar o galã [Fábio], esteja numa aproximação com a filha da autora. Tenta ficar amigo. O cerco interesseiro e pegajoso é detectado. Incomodada com a insistência dos pedidos para aumentar seu papel, Daniella começa a evitá-lo”, diz o site a respeito de Guilherme.
“Naquela semana, entregue o bloco de capítulos (seis), sua personagem não aparecia em 2 deles. O psicopata desespera. Quer conversar, pedir explicações. No dia do crime, elenco e produção da novela assistem, incomodados, à intensificação do cerco e as tentativas de Daniella de se esquivar dele”. O tal cerco nos bastidores resultou na barbárie: “18 estocadas no coração e no pescoço. Nenhuma lesão de defesa”.
“De Corpo e Alma” seguiu adiante, praticamente sem modificações. Antes da exibição do capítulo de 29 de dezembro, o de número 128, Sérgio Chapelin afirmou em texto lido no “Jornal Nacional”: “Seria compreensível que a dor prevalecesse sobre a ficção e Yasmin também morresse hoje, mas Gloria Perez, num exemplo de força, determinação e senso de profissionalismo, decidiu preservar a obra de ficção, por mais que doa cada palavra, cada cena imaginada para Yasmin”.
Contudo, sequências em que Daniella contracenava com Guilherme foram suprimidas. Coube a Leonor Bassères, amparada por Gilberto Braga, resolver os entreveros de produção. Aproveitando-se dos desdobramentos da fuga de Verinha (Juliana Teixeira) para Campos, Leonor colocou Bira, irmão da personagem, em seu encalço. E ele não apareceu mais. “Nós resolvemos tirar logo a imagem dele do ar. Eu não aguentava ver a cara do Bira. Me dava vontade de quebrar a TV quando ele aparecia”, declarou Bassères em entrevista ao jornal O Globo, de 10 de janeiro de 1993.
A última cena de Yasmin foi ao ar em 19 de janeiro de 1993. Nela, a moça contemplava uma foto do amado Caio. Na sequência, entraram os depoimentos do elenco, despedindo-se da amiga e colega de trabalho. Daniella voltou a aparecer na TV posteriormente, em flashbacks, nas memórias de Caio e Reginaldo (Eri Johnson), o gótico que, numa coincidência fúnebre, sonhava com encontros românticos com sua musa em cemitérios e outros cenários funestos.
A audiência e a “quase-reprise”
A mórbida curiosidade do público acerca dos desdobramentos do crime na novela não alterou a audiência da mesma. Embora tenha estreado com números altos – o primeiro capítulo bateu a antecessora “Pedra Sobre Pedra” (1992), com 55 pontos frente a 47 – a trama perdeu audiência com o horário eleitoral, da escolha para prefeitos e vereadores.
Nas dozes primeiras semanas, “De Corpo e Alma” atraiu em média 3,3 milhões de pessoas na Grande São Paulo; abaixo de “Pedra Sobre Pedra” (4,8 milhões), “O Dono do Mundo” (com 3,8) e “Meu Bem Meu Mal” (4,6 milhões), segundo dados da Folha de São Paulo, de 9 de janeiro de 1993. Já em Portugal, com exibição quase simultânea a do Brasil, a novela registrou cerca de 20% de acréscimo nos índices, em razão do falatório na imprensa internacional acerca do assassinato de Daniella Perez.
No Brasil, a novela sofreu críticas por ser “mexicana” demais – o SBT chegou a fazer anúncio tripudiando sobre o excesso de lágrimas e a Globo determinou que Tarcísio Meira aparasse o bigode, e Cristiana Oliveira repaginasse o visual, aproveitando-se do momento em que a paixão de Diogo e Paloma aflorava para reduzir a caracterização “cucaracha”.
Embora de triste lembrança para grande parte dos noveleiros, muitos ainda pedem por uma reprise de “De Corpo e Alma”, no “Vale a Pena Ver de Novo” ou no Canal Viva. Em 2000, a Globo, pasmem, solicitou a liberação do Ministério da Justiça para veicular a obra em suas tardes. O selo “12 anos” foi readequado para “livre”, o que possibilitava a exibição. A emissora, contudo, não a representou. Certamente para preservar a memória de Daniella Perez e poupar a todos do constrangimento de ver Guilherme de Pádua em cena com a atriz.
O pedido de liberação junto ao Ministério da Justiça também aparece, numa leitura mais “fria”, apenas como elemento de guerra da Globo, numa forma de evitar que o órgão se atentasse para o conteúdo pesado de “A Próxima Vítima” (1995), folhetim que acabou ocupando o “Vale a Pena Ver de Novo”. Na mesma ocasião, a emissora solicitou também a reclassificação de “Corpo a Corpo” (1984), “Roque Santeiro” (1985) – substituta de ‘Vítima’ na faixa – e “Explode Coração” (1995), também de Gloria Perez.
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Duh Secco é “telemaníaco” desde criancinha. Em 2014, criou o blog “Vivo no Viva”, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.
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Duh Secco é "telemaníaco" desde criancinha. Em 2014, criou o blog Vivo no Viva, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.