Crítica que Walcyr Carrasco despreza também ajudou A Dona do Pedaço

A Dona do Pedaço

Walcyr Carrasco, o autor de A Dona do Pedaço; relação de amor e ódio com a crítica (Imagem: Divulgação / Globo)

Ao longo dos 161 capítulos de A Dona do Pedaço, Walcyr Carrasco se esforçou para desmerecer as críticas – assim como fazem seus fãs mais ardorosos. Em entrevista ao jornalista Leo Dias, do portal UOL, declarou: “Eu nem de longe leio crítica. Vou perder tempo? Não sou ligado a crítica. No Brasil, é muito grande [a figura] daquele crítico amargurado, que vê tudo ruim“. Carrasco e seus defensores também usam a audiência como principal argumento “anticrítica”.

Até aí tudo bem. Mas, conforme destacou o jornalista Maurício Stycer, também do UOL, Walcyr já teve seus dias de crítico. Em sua coluna na revista Contigo!, resgatada por Geraldo Ramos Júnior no Twitter, condenou a inverossimilhança de Explode Coração, de Glória Perez, e o mau aproveitamento de Ana Rosa em História de Amor, de Manoel Carlos, ambas de 1995. Enquanto crítico, condenava o que hoje pratica; enquanto autor, desmerece quem faz o que ele fazia.

Ao leitor, pode parecer que trata-se apenas de uma rusga. Não é bem assim… Walcyr Carrasco, embora respaldado pela excelente audiência, certamente se atenta para o que falam de suas obras; caso contrário, não se preocuparia em, de certa forma, rebater. Quanto aos críticos, falo por mim: reconheço as virtudes do autor, mas os defeitos me incomodam sim, profundamente. Estranho fenômeno: ao mesmo tempo em que afronta minha inteligência, Carrasco me faz esperar pelo próximo capítulo.

O autor de A Dona do Pedaço entende e muito da carpintaria do folhetim. Joga com todos os clichês, conforme convém à narrativa. Assim arma enredos capazes de capturar público – como fez agora, acrescentando, de acordo com dados preliminares, quase sete pontos à audiência da novela anterior, O Sétimo Guardião.

Escreveu o último grande sucesso da Manchete, Xica da Silva (1996), uma das melhores produções dos anos 1990. Captou o espírito mexicano do SBT com a melosa e imperdível Fascinação (1998). Assinou as melhores novelas das 18h da Globo na década passada, a divertida Caras e Bocas (2009) às 19h e a brilhante Verdades Secretas (2015) às 23h. Seu desempenho às 21h, contudo, é desde sempre condenável.

Com A Dona do Pedaço não foi diferente. Walcyr Carrasco estruturou a sinopse em três semanas – alguns autores levam anos e, ainda assim, tropeçam. Mais uma vez, mostrou-se alinhado com os tempos atuais: tipos que apostam no enfretamento, de arma em punho, como solução de inúmeros problemas e figuras ingênuas apegadas à religião e à moralidade parecem dominar os perfis que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República.

Tais características, porém, jogaram contra os personagens; para manter a novela em pé, Carrasco, mandou a coerência às favas. Desta forma, a boleira Maria da Paz (Juliana Paes), de um tino comercial invejável, agia como uma perfeita idiota diante da filha oportunista Josiane (Agatha Moreira). E Vivi Guedes (Paolla Oliveira), a digital influencer extremamente esclarecida, ignorava os perfis violentos de seus pretendentes Camilo (Lee Taylor) e Chiclete (Sérgio Guizé).

O desleixo de Walcyr Carrasco com seus personagens, como visto em Amor à Vida (2013) e O Outro Lado do Paraíso (2017), cria situações esdrúxulas. A menina Cássia (Mel Maia), enganada na web por um pedófilo, garante que “tudo que está na internet é verdade” ao ver uma fake news que envolvia seu tio Régis (Reynaldo Gianecchini).

O autor cai na mesma inverossimilhança que o incomodava enquanto crítico. Desperdiça talentos tão grandes quanto o de Ana Rosa: Marco Nanini (Eusébio) esteve à frente de tramas imbecis como a do irmão gêmeo que evaporou ou da mão boba que cometia furtos; também Ary Fontoura (Antero), Betty Faria (Cornélia), Rosamaria Murtinho (Linda), Rosi Campos (Doroteia) e Marcos Palmeira (Amadeu), protagonista relegado, em dado momento, a ouvinte de personagens periféricos.

O elenco, aliás, auxiliou o autor a mascarar a narrativa capenga. Juliana Paes é estrela da primeira grandeza, capaz de fazer o público acreditar piamente em Maria da Paz, no olhar ou na forma com trançava o laço nos cabeços antes de se dedicar às panelas. Paolla Oliveira personificou Vivi Guedes de tal forma que é impossível mensurar onde termina o êxito da atriz e começa o da personagem – responsável por reinventar a relação da Globo com o mercado publicitário.

Nomes como Agatha Moreira (Josiane), Caio Castro (Rock), Malvino Salvador (Rock), Monica Iozzi (Kim), Suely Franco (Marlene), Glamour Garcia (Britney), Bruno Bevan (Zé Hélio) e Natália do Vale (Beatriz) também fizeram a diferença. Cabe salientar o trabalho da diretora artística Amora Mautner e de sua equipe – de fotografia marcante e longe da publicidade que marcou a passagem dela por A Regra do Jogo (2015), de triste lembrança.

Walcyr Carrasco prometeu surpreender com o último capítulo. Não o fez. Poderosa nas redes sociais, Vivi Guedes se despediu dos “seguimores” antes de fugir ao lado de Chiclete, que matou Camilo. O assassino de aluguel não pagou por seus crimes; nem mesmo por este último, cometido em legítima defesa. Vivi também sequer pensou em usar sua força na web para qualquer alerta sobre violência doméstica e relacionamento abusivo. Isto sim seria uma surpresa em se tratando ao autor…

A sensação é que, diferente de outras produções da casa, as novelas de Walcyr Carrasco não possuem o compromisso com a responsabilidade social que a Globo tanto preza. A professora agredida por um aluno problemático, Silvia (Lucy Ramos), acabou pedindo desculpas ao agressor. A homofobia de Cássia foi resolvida quando o namorado de seu pai, Leandro (Guilherme Leicam), se machucou para defendê-la. Novela, a crítica sabe e o público também, não é só entretenimento.

O desfecho do casal Agno e Leandro, aliás, foi moralista. Os dois trocaram apenas um selinho insosso – um retrocesso para quem promoveu o primeiro beijo gay às 21h. Por outro lado, Walcyr escancarou o cinismo de quem se apega à religião como meio de enriquecimento, através de Fabiana e de Josiane; esta, diabólica na última cena. Antes, Jô liquidou o ex-amante Régis (Reynaldo Gianecchini), tal qual Angel (Camila Queiroz) e Alex (Rodrigo Lombardi) em Verdades Secretas. Nada de novo no front.

É de se lamentar, por fim, que a protagonista Maria da Paz tenha chegado ao último capítulo sem cumprir seu objetivo: o de redimir a filha de seus pecados. Tão frustrante quanto a luta de Jô para destruir a mãe sem um motivo plausível… Walcyr jamais foi claro o suficiente ao abordar tal questão. Caso confrontado sobre, dirá que a crítica não compreendeu sua proposta, como fez na época de O Outro Lado do Paraíso. Ou que não aprecia o que é popular.

Carrasco, talvez, não tenha conhecimento de análises sobre novelas como Bom Sucesso e A Força do Querer (2017). Ou mesmo de suas tramas para às 18h, populares e boas. Caso fosse crítico, talvez não apreciasse tais novelas, por inverossimilhanças e desperdício de talentos. Num próximo trabalho, repetirá tais erros, o discurso e, certamente, a audiência. Vai se indispor com críticos, mais uma vez. Uma relação de amor e ódio que alimenta a indústria e o seu êxito.

Quem repercute, também auxilia. Passar ao largo da audiência e da crítica é a morte para qualquer produto de TV. Que o diga O Sétimo Guardião, que só fez barulho por conta dos imbróglios acerca da autoria e da tumultuada relação entre membros de seu elenco por conta de acontecimentos externos. Walcyr Carrasco sabe que não trabalha sozinho. E quem critica sabe que ele pode mais. Audiência não é pretexto para nivelar por baixo. Crítica não é mera amargura.

Duh Secco
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Duh Secco

Duh Secco é  "telemaníaco" desde criancinha. Em 2014, criou o blog Vivo no Viva, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.