Desejos de Mulher, 20 anos: Alessandra Negrini salvou novela com “Regina Duarte maluca”

Desejos de Mulher

Alessandra Negrini (Selma Dumont) e Regina Duarte (Andréa Vargas) em Desejos de Mulher; novela completa 20 anos (Imagens: João Miguel Júnior / Globo)

“Tudo o que você deseja na próxima novela das sete”. Era este o slogan de lançamento de Desejos de Mulher, trama que completa nesta sexta-feira (21) vinte anos de sua estreia. No teaser, mulheres de diferentes regiões do país comentavam suas vontades, seus intentos, suas ambições. Parecia que estava por vir, de fato, uma novela com tudo o que o público – em especial as mulheres, claro – desejava. Parecia. Em retrospecto na coluna de hoje, a tortuosa trajetória da trama estrelada por Regina Duarte, Gloria Pires e Alessandra Negrini.

Desejos de Mulher

Fernanda Montenegro (Lulu de Luxemburgo) em As Filhas da Mãe; insucesso de novela precipitou estreia da substituta, Desejos de Mulher (Imagem: João Miguel Júnior / Globo)

Nos anos 1990 e 2000, a Globo amargou sucessivas experiências malsucedidas no horário. Dentre o que funcionou, o drama A Viagem (1994) e a comédia Quatro Por Quatro (1994). Este segundo estilo ainda dominava a faixa, até o desempenho pífio de As Filhas da Mãe, incompreendido enredo de Silvio de Abreu. A solução: encurtar a novela em dez semanas e substituí-la por uma “tragédia” de tintas fortes, centrada nas divergências entre duas irmãs, acentuadas após a revelação de que uma delas, a mais velha, fora adotada; roteiro de Euclydes Marinho, da bem-quista Andando Nas Nuvens (1999) e de séries e minisséries como Malu Mulher (1979) e Quem Ama, Não Mata (1982). Para os papéis centrais, duas das maiores estrelas da TV: Regina Duarte e Gloria Pires, reeditando a parceria da aclamada Vale Tudo (1988) – e ainda cogitaram Glória Menezes como mãe das duas, posteriormente a cargo da bissexta Amélia Bittencourt.

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Regina Duarte (Raquel) e Gloria Pires (Maria de Fátima) em Vale Tudo; Desejos de Mulher reeditou parceria de sucesso (Imagem: Divulgação / Globo)

Infalível? Não. Desejos de Mulher naufragou, comprometida pelo noticiário político-policial envolvendo o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, filiado ao PT, pelo período de férias aliado ao horário de verão e pelo adiantamento da produção – com gravações iniciadas um mês antes da estreia e uma sinopse ambientada em São Paulo transferida a toque de caixa para o Rio de Janeiro. Um “apagão” jogou contra o primeiro capítulo, revisto em retrospecto pelo público antes do segundo episódio; uma tentativa de ampliar a plateia da estreia, 29 pontos de audiência (dado alarmante para a época).

A comédia havia falhado; o dramalhão falhava também. Desejos de Mulher chegou a amargar índices aquém dos de Malhação e A Padroeira, a novela das seis. Também viu a reprise do Vale a Pena Ver de Novo, História de Amor (1995), ficar a apenas quatro pontos de sua média (em 31 de janeiro de 2002, dados da Folha de São Paulo). Apavorada, a Globo lançou mão da “operação-salvamento”, deflagrada após o Carnaval, na segunda semana de fevereiro. A solução: diminuir as desavenças entre as irmãs, que passaram a ter suas histórias correndo em paralelo.

Mudança de rota em pleno voo

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Gloria Pires (Júlia) e Eduardo Moscovis (Chico) em Desejos de Mulher; casal acabou ofuscado por alterações na trama (Imagem: Gianne Carvalho / Globo)

Júlia Moreno (Gloria) perdeu importância. Na luta para livrar o marido Renato (Cássio Gabus Mendes) da cadeia, a dona de casa por opção tirou o diploma de jornalista da gaveta. Entrou em disputa profissional com o aliado Chico Maia (Eduardo Moscovis), com quem se acertou no último capítulo, após descobrir que o esposo era realmente corrupto. Renato passou boa parte da trama numa cadeira de rodas, quando arrependido de seus atos tentou impedir seus comparsas de atirarem em Chico.

O “desvio de rota” afetou Fernanda (Deborah Evelyn), quarta linha deste quadrado amoroso, rifada da novela. Em substituição, surgiu Gilda (Drica Moraes, escalada após as recusas de Débora Bloch, Júlia Lemmertz e Vivianne Pasmanter), interesse de Chico, e Alex Müller (Paulo Betti), escritor virgem que queria Júlia para sua primeira mulher. O perfil de Gabriela (Mel Lisboa), mocinha interiorana decidida a ganhar a vida como modelo, foi drasticamente alterado: prevaleceu o olhar lancinante da atriz, ainda impregnado de Anita (sim, a de Presença de Anita, exibida no ano anterior), em um tipo arrivista que chegou a dormir com o vilão para conquistar um lugar ao sol – e acabou debaixo da terra.

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Regina Duarte (Andréa) e Herson Capri (Diogo) em Desejos de Mulher; figura empoderada virou mocinha ingênua após mudanças no enredo (Imagem: João Miguel Júnior / Globo)

Andréa Vargas (Regina), contudo, foi a mais atingida pela “operação-salvamento”. Estilista complexada que chega aos 50 anos desejando ser mãe, Andréa descobre ser irmã biológica de Selma (Alessandra Negrini), a gerente de marketing que se deitou com o marido da patroa, Bruno (José de Abreu), para tomar posse de tudo o que pertencia a ela. Selma se tornou a principal figura do enredo, numa virada que chegou a ser atribuída ao então colaborador João Emanuel Carneiro, por se assemelhar a trajetória de vilãs como Bárbara (Giovanna Antonelli), de Da Cor do Pecado (2004).

Vilã com sérios transtornos psiquiátricos, Selma tentou tomar Diogo (Herson Capri) de Andréa, chegou a persegui-la com uma faca e apostou em inúmeras tentativas de liquidar Bruno; ambos contrataram o mesmo capanga, Beto (Márcio Kieling), com o mesmo objetivo, o de eliminar o outro. Tão odioso quanto a amante, Bruno chegou a trocar os frascos de remédio de Isaura (Miriam Pires), mãe de Andréa e Selma, para que esta segunda envenenasse a própria mãe quando fosse lhe medicar. E em meio a tanta maldade, Andréa chegou a perder a memória (num festival de excessos expressivos de Regina), ao ver Selma cair de um penhasco – surpreendentemente, sobreviveu, entrou para um convento e morreu num confronto com Bruno, expurgando o remorso que a corroía pelo mal que fez à irmã.

Por fim, o êxito

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Alessandra Negrini (Selma) e Sílvia Pfeifer (Virgínia) em Desejos de Mulher; vilã “estilo João Emanuel Carneiro” dominou narrativa (Imagem: Renato Rocha Miranda / Globo)

Essa virada digna de novela mexicana turbinou os índices de Desejos de Mulher, que se colocou acima dos 30 pontos ainda em fevereiro. Saiu de cena como êxito de audiência, mas “dramaturgicamente” criticada. O melodrama, no entanto, não dominou a cena por completo. O núcleo homossexual, capitaneado por Ariel (José Wilker), também se destacou. Companheiro de Tadeu (Otávio Müller), o devoto de Santa Terezinha de Lisieux se envolve sexualmente com Virgínia (Sílvia Pfeifer), dona da agência de modelos Classy; Ariel já havia sido casado com a motociclista Raquel Vonnegut (Renata Sorrah), mãe de sua filha Patty (a estreante Nathália Rodrigues). Pelo desempenho, longe da mera caricatura, Wilker e Müller subiram no trio elétrico da revista G Magazine na Parada do Orgulho Gay daquele ano.

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Vera Holtz (Bárbara) e Otávio Müller (Tadeu) em Desejos de Mulher; talentos se destacaram em núcleos paralelos (Imagem: João Miguel Júnior / Globo)

Cabe destacar ainda a deliciosa presença de Vera Holtz, como Bárbara Toledo, editora da revista Estilo Mulher – que ganhou um site com matérias de comportamento, moda e variedade no então recém-criado portal Globo.com. Desejos de Mulher chegou ao fim em agosto, com 32,6 pontos de média geral (seu recorde, 42, se deu em 28 de maio, quando Selma ameaçou se atirar do alto de um prédio e foi salva por Andréa). A despeito do último capítulo, a então primeira-dama Ruth Cardoso, ao encontrar Regina Duarte, comentou: “Assisti ao último capítulo da novela no sábado. Não entendi nada de nada, mas você estava bonitinha”. Talvez boa parte do público também não tenha entendido, mas aplaudiu. Uma novela que entreteve, divertiu e cumpriu seu objetivo, ainda que por vias tortas, sacrificando a coerência e abraçando o folhetim desvairado.

Duh Secco
Escrito por

Duh Secco

Duh Secco é  "telemaníaco" desde criancinha. Em 2014, criou o blog Vivo no Viva, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.