O autor parte, mas a obra permanece. Não só através das memórias do público e das reprises… Gilberto Braga, que nos deixou ontem (26), seguirá também como referência para autores contemporâneos a ele ou de gerações posteriores. Nos últimos anos, não foram poucas as tramas que reverenciaram cenas e figuras criadas por Gilberto. A coluna falou sobre ele e seus textos com vários talentos, presentes em todas as mídias. Todos listaram sequências inesquecíveis das muitas desenvolvidas pelo gênio das novelas e minisséries.
VEJA ESSA
Um dos responsáveis pelo êxito de Gênesis, bem-sucedido folhetim da Record, Camilo Pellegrini rememorou Vale Tudo (1988) e o contragolpe de Maria de Fátima (Gloria Pires) ao notar que um taxista tentava ludibriá-la. Logo ela, que vendeu a casa da mãe, deixando Raquel (Regina Duarte) literalmente na rua, para fazer a vida no Rio de Janeiro:
“Jamais vou me esquecer da cena da Maria de Fátima parando de táxi numa lojinha e comprando a banana que baratearia sua corrida. Parte da sequência foi no Largo do Machado, que eu só ia conhecer muitos anos depois. Quando pisei lá pela primeira vez e lembrei que foi ali que aconteceu um dos primeiros ‘caôs’ de Fátima, foi uma sensação incrível!”.
Vale Tudo também foi a escolha de Gustavo Reiz, que, após êxitos na Record, prepara sua estreia na Globo com Fuzuê, às 19h. No caso, o fim da linha para Odete Roitman (Beatriz Segall), que, às vésperas de seu misterioso assassinato, foi desmascarada por Raquel. A vilã induziu a herdeira Heleninha (Renata Sorrah) a acreditar que havia matado o irmão num desastre de carro:
“Uma cena (uma sequência, na verdade) que acho lendária é de Vale Tudo, quando Heleninha descobre que não foi responsável pela morte do irmão. É um show de texto, de atuação, de tudo. A cena é longa, dramática, com monólogos para saborear. Termina com o embate de Odete e Heleninha, que questiona o amor da mãe. É genial. Uma obra prima da nossa teledramaturgia”.
Outro desfecho de Vale Tudo marcou Walcyr Carrasco. O responsável por Verdades Secretas II, primeira novela produzida para o streaming – em alta desde a estreia, há uma semana, no Globoplay –, exaltou a atualidade da cena em que Marco Aurélio (Reginaldo Faria), sujeito da pior espécie, foge do país dando uma banana para todos os brasileiros:
“A cena final com o Reginaldo Faria dando uma banana. Destaco essa cena que até hoje teria significado. Pelo significado político. Pela coragem”.
A mesma sequência foi resgatada por Claudia Souto, autora de Pega Pega (2017), atualmente em reprise. A comédia policial contou, inclusive, com uma homenagem para Vale Tudo. O mesmo Reginaldo Faria, então na pele de Athaíde, repete a fuga. Mas a policial Antônia (Vanessa Giácomo) impede o avião de levantar voo e, consequentemente, a banana:
“São tantas cenas icônicas e inesquecíveis… Vou destacar a banana que Marco Aurélio dá no avião ao sair do Brasil. Por ser atemporal, por expor a imoralidade de uma gente que segue explorando o nosso país: os corruptos, de todos os níveis, em todos os tempos”.
Alessandra Poggi, às voltas com Além da Ilusão, próximo folhetim das 18h, é mais uma fã da clássica cena de Vale Tudo. Mas outro momento inesquecível da trajetória de Gilberto Braga fez a cabeça da autora. No caso, a minissérie Anos Rebeldes (1992), na qual Claudia Abreu brilhou na pele de Heloísa, jovem de classe média alta que se engajava na luta contra o regime militar:
“Duas cenas inesquecíveis me marcaram. A primeira delas foi a morte da personagem da Claudia Abreu, Heloísa, em Anos Rebeldes. A segunda foi a banana que o personagem de Reginaldo Faria, Marco Aurélio, deu para o Brasil no final de Vale Tudo. Foram cenas marcantes porque revelam a capacidade que o Gilberto tinha de emocionar e surpreender o espectador. Perdemos um gênio da dramaturgia. Muito triste”.
Renata Corrêa, que hoje acompanha a produção de Rensga Hits!, série sobre o movimento feminejo para o Globoplay, também exaltou o trágico fim de Heloísa. Anos Rebeldes impulsionou o movimento “caras-pintadas”, como ficaram conhecidos os jovens que foram às ruas pelo impeachment de Fernando Collor de Mello, tal qual os personagens criados por Gilberto contra a ditadura:
“O assassinato da personagem Heloísa, interpretada pela atriz Claudia Abreu me marcou muito. A série é de 1992, fazia pouco tempo que o Brasil tinha se livrado da ditadura militar e Gilberto foi muito corajoso ao retratar o período, sem concessões. O fuzilamento da militante Heloísa pelo aparelho repressivo do estado mostra de forma clara o tipo de risco que os brasileiros que lutavam pela democracia estavam enfrentando. A cena ainda é atual no Brasil de hoje, pois somos um dos países que mais mata ativistas pelos direitos humanos”.
Anos Rebeldes partia do romance de João Alfredo (Cássio Gabus Mendes) e Maria Lúcia (Malu Mader). Ele, tal qual Heloísa, lutava por questões que afligiam o país. Ela, temendo repetir a vida de privações da mãe, casada com um militante político, mantém-se alienada. As divergências levaram ao fim do relacionamento, como lembrou Vincent Villari, de Tititi (2010) e Sangue Bom (2013):
“Me marcou muito o desfecho de Anos Rebeldes: Maria Lúcia e João Alfredo decidindo se afastar, apesar do amor, ao constatarem que seus valores são inconciliáveis. Depois, Maria Lúcia olhando para as fotografias da juventude ao som de ‘Como nossos pais’. Quanta coisa o Gilberto conseguia dizer, quantas emoções conseguia transmitir, manipulando com elegância e parcimônia as palavras e os signos”.
Outra minissérie de Braga, também protagonizada por Malu Mader, entrou para a galeria de Rosane Svartman sobre os trabalhos preferidos do autor. A responsável por Malhação – Sonhos (2014), Totalmente Demais (2015) e Bom Sucesso (2019) – todas em parceria com Paulo Halm – listou as cenas de Lurdinha (Malu) e Marcos (Felipe Camargo) em Anos Dourados:
“A primeira noite de Marcos e Lurdinha em Anos Dourados! Amo a cena do primeiro encontro também. Gilberto tem cenas mais famosas, brilhantes, com diálogos únicos, mas essa foi uma que me marcou. Acho que porque eu tinha a idade dos personagens. Ele chega na casa dela, ela pede que ele não fale nada…”.
Autor português laureado com o Emmy Internacional por Meu Amor (2009), agora às voltas com a adaptação de Dona Beija (1986) para o streaming, António Barreira celebrou as vilãs de Gilberto, mas também apontou a qualidade de suas mocinhas. Braga era adepto dos “pontos de virada”, quando a narrativa gira por completo, movimentando os capítulos.
“A volta de Júlia (Sonia Braga), dominando a pista de dança, como rainha da noite… Essa cena de Dancin’ Days (1978) é emblemática e mostra como as mocinhas do Gilberto sabiam dar a volta por cima. Mesma coisa como Maria Clara (Malu Mader) surrando Laura (Cláudia Abreu) no banheiro em Celebridade (2003). São pontos de virada… Uma das melhores novelas do Gilberto Braga é Corpo a Corpo’(1984). Trama excepcional! As grandes viradas me inspiraram muito… Há uma cena do enterro do suposto Diabo (Flávio Galvão) em que a Tereza (Glória Menezes), quando dá as costas para o túmulo, e ele está atrás dela. Isso também em ‘Escrava Isaura’, quando o primeiro interesse romântico de Isaura (Lucélia Santos) morre em um incêndio”.
Parceiro de Gilberto Braga em Força de um Desejo (1999), Alcides Nogueira exaltou a sensibilidade do autor ao abordar a homossexualidade, em meio à Censura da ditadura militar, em Brilhante (1981). Impedido de falar abertamente sobre o tema, Braga usou da trilha para pontuar os conflitos de Inácio (Dennis Carvalho), atormentado pela mãe Chica Newman (Fernanda Montenegro):
“Difícil dizer qual cena dele mais me toca. Gilberto criou momentos memoráveis, que ficarão para sempre conosco. Fico com uma sequência de Brilhante. Inácio chegando de uma sauna. Sua mãe, Chica Newman, deitada, lendo Proust, ao lado do marido Vitor (Mário Lago), que dorme… Inácio coloca o prelúdio de Tristão e Isolda para tocar… Imensa solidão. Chica e Inácio à procura do tempo perdido. Cena longa, densa… Mostrava como Gilberto via as cicatrizes humanas… Nunca me esqueci”.
Duh Secco é "telemaníaco" desde criancinha. Em 2014, criou o blog Vivo no Viva, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.