“Os críticos e analistas de TV não entenderam que “O Outro Lado do Paraíso” retomou uma estrutura antiga, um melodrama tradicional, sem vergonha de ser, como há muito tempo não era feito”. A frase é de Walcyr Carrasco, reconhecidamente um dos melhores autores de novelas do país na atualidade – de um “ritmo industrial” de fazer inveja a Ivani Ribeiro e Janete Clair em seus melhores anos; sempre bem-sucedido em audiência.
De fato, ‘O Outro Lado’ foi um melodrama para ninguém botar defeito. E isso não é demérito, pelo contrário. O que talvez Walcyr não tenha entendido é que a proposta foi bem compreendida; já a forma de conduzi-la, não.
Desde o início, Carrasco tratava a produção, encerrada na última sexta-feira (11), como “folhetim clássico […], mas com temáticas modernas”. E foi justamente na abordagem de “temáticas modernas” que o autor patinou. Os temas de relevância social presentes na narrativa ou foram tratados com superficialidade ou descambaram para o humor. Resvalou na irresponsabilidade. Isso explica, por exemplo, à aversão – notada em redes sociais – ao beijo de Samuel (Eriberto Leão) e Cido (Rafael Zulu), por determinada parcela de público. Tratados como chacota durante praticamente toda a novela, não despertaram empatia suficiente para fazer com que o telespectador vibrasse com o carinho, como foi com Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), de “Amor à Vida” (2013), também de Walcyr.
É bem verdade que Walcyr Carrasco tentou outro caminho, de início. Porém, as cenas em que Gael (Sérgio Guizé) espancava e violentava sexualmente a esposa Clara, e a postura desta diante das agressões, afugentaram a audiência. Talvez pelo tom soturno impresso pela direção, capitaneada por Mauro Mendonça Filho. Ou pelo contraponto à antecessora, “A Força do Querer” (2017): das empoderadas Jeiza (Paolla Oliveira) e Ritinha (Isis Valverde) para a apática professorinha do quilombo. A mudança de fase, em 27 de novembro, prometia novos tempos: Clara, aprisionada em um manicômio pela sogra, Sophia (Marieta Severo), jurava vingança; sua amiga Raquel (Erika Januza), era aprovada em um concurso público, como substituta do corrupto juiz Gustavo (Luís Melo).
Foi quando “O Outro Lado do Paraíso” subiu nos números. E despencou no quesito qualidade. O autor lançou mão de artifícios que funcionaram perfeitamente bem em seus folhetins de época, às 18h – o horário onde se sai melhor –, mas que não condiziam com um melodrama realista ambientado no século XXI. O que dizer da anã Estela (Juliana Caldas), de extensa carreira acadêmica na Suíça, “aprisionada” pela mãe que a execrava, Sophia (Marieta Severo), numa casa nos confins de Tocantins? Até nos contos de fada, a princesinha reagiria. Estela só fez se lamentar. Beth (Glória Pires), presa, negou-se a entregar os documentos e revelar seu nome. E não reconheceu a filha, Adriana (Julia Dalavia), sua advogada – num mundo onde todos estão expostos nas redes sociais. Ninguém ali nunca ouviu falar em “joga no Google”.
Os debates sociais, dos quais a Globo sempre se orgulha (com razão), ganharam resoluções primárias: a racista Nádia (Eliane Giardini) aceita a nora negra, Raquel, após ganhar um neto negro; o agressor Gael encontra, na benzedeira Mercedes (Fernanda Montenegro), o “remédio” para suas condutas criminosas; o psiquiatra Samuel, cuja homossexualidade a mãe Adnéia (Ana Lúcia Torre) tentou “curar”, acaba aceito ao ameaçar abandoná-la. E o mais grave: Laura (Bella Piero), vítima de abuso sexual se consulta com Adriana, advogada especialista em coaching e hipnose, numa ação de merchandising que ignorou qualquer orientação a respeito do assunto – o que só foi feito capítulos depois, no julgamento do pedófilo Vinícius (Flávio Tolezani), diante do barulho na imprensa e da reprimenda dos órgãos competentes.
Ficou a impressão de que Walcyr ignorou até mesmo as pesquisas que pautam os autores da casa. A ginecologista Tônia (Patrícia Elizardo) orientou as “funcionárias” do bordel Love Chic a se protegerem com pílula anticoncepcional; cenas depois, se entregou ao garimpeiro Zé Vitor (Rafael Losso), sem proteção. A impotência sexual de Diego (Arthur Aguiar) foi resumida à idealização da esposa virgem, Melissa (Gabriela Mustafá), num entrecho sem pé, nem cabeça – que passou longe da fantasia; beirou o ridículo. Tal qual o médico, Elder (Carlos Bonow), que elogiava os pés de suas pacientes durante as consultas. O texto acompanhou: foi de pérolas como “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”, de Suzy (Ellen Rocche) para Samuel, ao “a senhora chama Adnéia, mas não tem apneia”, de Samuel para Suzy.
A tal vingança de Clara, mola propulsora de todo o enredo, acabou comprometida. As investidas da mocinha para punir os responsáveis por sua internação partiam de suposições. E não tiveram efeito prático: o psiquiatra não foi punido por emitir atestados falsos; o juiz perdeu o cargo, mas a esposa, “propineira”, passou ao largo da justiça; Lívia (Grazi Massafera), que dopava a cunhada na primeira fase, sequer atiçou a sana justiceira de Clara. Não se pode negar, porém, a habilidade de Walcyr Carrasco, mestre em capítulos de “catarse”. Tanto os episódios em que a mocinha concluiu suas ações – como as descobertas sobre a “vida dupla” de Samuel e Gustavo –, quanto nos julgamentos de Beth, Vinícius e Sofia (que garantiu o recorde de audiência da trama, no penúltimo capítulo).
Com uma narrativa de poucos altos e muitos baixos, o elenco, evidentemente, também padeceu. A sensação é de que Glória Pires, após um início promissor, jogou a toalha mais uma vez. Idem para Bianca Bin, “monocromática” na segunda fase. Rafael Cardoso (Renato), em um tipo similar ao César de “Sol Nascente” (2016), não acrescentou muita coisa. Também aquém das expectativas estiveram Caio Paduan (Bruno), Érika Januza e Júlia Dalavia. Subaproveitados, foram Grazi Massafera, Tainá Muller (Aura), Alejandro Claveaux (Nicolau), Fábio Lago (Nick), Zezé Motta (Mãe do Quilombo) e Anderson di Rizzi (Nicolau) – alvo de um “lapso de memória” do autor, que quis transformar Desirée (Priscila Assum) em homem após levá-la ao ginecologista para reconstruir o hímen.
Como destaques positivos, os imbatíveis Fernanda Montenegro, Laura Cardoso (divertindo-se como Caetana), Lima Duarte (Josafá) e Marieta Severo. Também Sérgio Guizé e Thiago Fragoso em tipos complicados: o inconsistente Gael e o mocinho, quase sem nuances, Patrick. Ainda, Fernanda Rodrigues (Fabiana), grata surpresa; Juliano Cazarré (Mariano) e Rafael Losso (Zé Vitor), Ana Lúcia Torre e Ellen Rocche (embora inseridas no vexatório “núcleo gay”), Bella Piero e Igor Angelkorte (Rafael), e Mayana Neiva (Leandra) e Juliane Araújo (Mayra), do bordel Love Chic. Já Walcyr Carrasco sai deste trabalho com um pé em cada canoa: consagrado pela audiência; combalido pelo enredo frágil, personagens incoerentes, texto paupérrimo e “temáticas modernas” alvejadas pelas licenças poéticas do “melodrama tradicional”.
Último Capítulo
Ainda que represente a conclusão da vingança de Clara, o castigo de Sophia – internada num manicômio judiciário e submetida a eletrochoques – foi mais uma “bola fora” do enredo, já que a prática, condenada por todos os setores da saúde, está em desuso há tempos. Tudo bem; é “fantasia”. De extrema delicadeza a despedida de Mercedes e Josafá da amiga Caetana, mas de muito mau gosto colocar Laura Cardoso em um caixão, bem como tirar Pabllo Vittar da cartola, para animar velório. Delicada, e “quente”, a primeira noite de Clara e Patrick. Belíssimo o casamento dos dois, bem como a “despedida” de Mercedes e a quebra da “quarta parede”, com a equipe técnica desmontando os cenários – uma homenagem, certamente, produção e direção, eficientes em todos os momentos.
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Duh Secco é "telemaníaco" desde criancinha. Em 2014, criou o blog Vivo no Viva, repercutindo novelas e demais atrações do Canal Viva. Foi contratado pela Globosat no ano seguinte. Integra o time do RD1 desde 2016, nas funções de repórter e colunista. Também está nas redes sociais e no YouTube (@DuhSecco), sempre reverenciando a história da TV e comentando as produções atuais.