3 situações absurdas em A Favorita que seriam inimagináveis hoje em dia

A Favorita
“Cura gay” é uma das tramas que envelheceram mal em A Favorita (Imagem: Reprodução / Globo)

É com certo atraso que resolvi escrever sobre algumas tramas que me incomodaram ao rever A Favorita (2008) na minha reprise particular pelo Globoplay. O clássico de João Emanuel Carneiro voltou a fazer parte da minha rotina 12 anos depois de ser exibido pela primeira vez, e confesso que uma das minhas curiosidades era observar como algumas situações eram retratadas na época, também como reflexo de uma sociedade que não discutia tantas questões como nos dias atuais. Como diria Aguinaldo Silva, é possível observar a história do Brasil através da teledramaturgia.

Machismo Escancarado

Logo nas primeiras semanas da novela, um diálogo entre Cassiano (Thiago Rodrigues) e Damião (Malvino Salvador) me chamou a atenção. O então namorado de Lara (Mariana Ximenes) conta para o amigo que teve que socorrer Maria do Céu (Deborah Secco) após a retirante desmaiar em um banheiro público. Damião, então, questiona se o rapaz “tirou casquinha” da moça, e confessa que teria se aproveitado da situação de vulnerabilidade dela. O momento é tratado como uma conversa corriqueira entre dois amigos durante o intervalo de uma partida de futebol.

Damião, aliás, é conhecido na cidade de Triunfo como o garanhão que “não perdoa” nenhuma mulher e que não consegue manter a fidelidade em suas relações amorosas, mas não sofre grandes consequências por isso. Sorte essa que sua amante, Dedina (Helena Ranaldi), não teve.

Dedina
Dedina pagou a traição com a própria vida, mas antes perdoou os homens que a humilharam (Imagem: Reprodução / Globo)

Ao se relacionar com o operário e trair Elias (Leonardo Medeiros), a primeira dama foi desmascarada, espancada e arrastada pelos cabelos em praça pública pelo marido. Abandonada nas ruas e sem conseguir se restabelecer, ela é tratada como louca e passa os seus últimos dias sendo humilhada, hostilizada e quase é estuprada por Leo (Jackson Antunes), até sofrer com uma doença repentina e, na beira da morte, promover a reconciliação entre o ex-marido e o ex-amante, os homens que a rechaçaram.

Por que Dedina perdeu o juízo por causa de um homem? Por que ela saiu de casa sem direito a nada? Por que ela ficou sem ter onde morar? Por que ela abandonou o trabalho como professora? Ela seria demitida por trair o marido?

As cenas foram reprovadas pela atriz Helena Ranaldi na época. Em entrevista para o site da novela, a atriz comentou que a primeira dama merecia sofrer as consequências de seu erro, mas não da maneira tão humilhante como foi ao ar. “Eu não queria que fosse desse jeito. Não imaginava que a personagem ia mudar tanto assim. A situação dela [após a segunda traição] está mais difícil, mas não acho que mereça ter um castigo tão cruel”, lamentou.

Só para destacar o quanto a trajetória de Dedina destoa dos homens que cometeram o mesmo erro na novela, é preciso citar que o próprio Damião também traiu Greice (Roberta Gualda) por duas vezes ao se relacionar com a primeira dama, mas teve um final feliz ao lado dela no último capítulo, assim como Átila (Chico Díaz), que traiu Lorena (Gisele Fróes) com a cunhada Cida (Claudia Ohana) e foi perdoado no dia seguinte.

A Favorita
Sororidade passou longe: Mulheres rivalizaram muito em A Favorita (Imagem: Reprodução / Globo)

Rivalidade Feminina

Aqui não estou falando da relação entre Flora (Patrícia Pillar) e Donatella (Claudia Raia), essa sim respaldada por razões contundentes e envolvida em trama muito bem construída. Mas a rivalidade feminina está muito presente nas relações entre as personagens da novela. Em uma época em que a palavra sororidade estava muito longe de fazer parte do nosso vocabulário, o folhetim repetiu o estereótipo de que as mulheres devem competir e se odiar entre si.

Maria do Céu, por exemplo, disputou a preferência de Cassiano com outras mulheres, com direito a constantes embates, xingamentos e comparações físicas. Eram rotineiras as discussões da personagem com Manu (Emanuelle Araújo), Lara (Mariana Ximenes) e Alícia (Taís Araújo), esta última rendendo até agressões físicas.

Um pouquinho distante dali, Stela (Paula Burlamaqui) também enfrentava a ira das esposas de Triunfo simplesmente por ter despertado a atenção dos homens do local. Até mesmo a bem-intencionada Lorena chegou a espalhar mentiras sobre o passado da nova vizinha e criticar o seu suposto comportamento liberal que ela tinha. Além de não ter se envolvido com nenhum rapaz, a cozinheira mais tarde se revelou homossexual.

Homofobia e a “Cura Gay”

A primeira situação de discriminação contra os homossexuais que observei na novela foi quando o deputado Romildo Rosa (Milton Gonçalves) mandou espalhar na cidade uma fake news de que o seu adversário político, Elias, mantinha uma relação homoafetiva com outro homem, e que Shiva (Miguel Rômulo) seria fruto desta relação, quando na verdade o candidato a prefeito dividia a guarda do menino com o pai, Augusto César (José Mayer).

Em uma das cenas, Elias é vítima de comentários maldosos de Vanderlei (Alexandre Nero), personagem querido por todos e que, por se relacionar com Catarina (Lilia Cabral), tinha a função de ser um contraponto da ignorância do reacionário Leo (Jackson Antunes), por exemplo. A cidade, então, fica dividida entre os que acreditam e os que não acreditam no boato, mas ninguém questiona o fato de que a sexualidade do candidato não é de interesse público.

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Apaixonado por Halley, Orlandinho “desiste” de ser gay e engata um relacionamento heterossexual com Maria do Céu (Imagem: Reprodução / Globo)

Outra trama completamente decepcionante é a de Orlandinho (Iran Malfitano). Tratado com desprezo pela família por ser gay, o rapaz chega a ser submetido a uma pseudoterapia para “reverter” a sua orientação sexual e, após aceitar um casamento de aparências com Maria do Céu, mesmo gostando de Halley (Cauã Reymond), ele acaba se apaixonando de verdade pela ex-garota de programa.

A abordagem da bissexualidade poderia ser válida, mas o fato é que o personagem mudou de gostos e atitudes de forma rápida demais. Em uma das cenas, Orlandinho chega a transar 24h seguidas com a esposa, por quem em meses de namoro não tinha demonstrado o menor interesse. Se não bastasse isso, ele constantemente é vítima de comentários depreciativos, sendo chamado de “boiola”, “baitola” e “transviado” por outros personagens. “Virar hétero” foi um boa resposta diante do preconceito que ele sempre enfrentou?

Essa não foi a primeira e nem a última vez que um personagem deixou de ser gay em uma novela de João Emanuel Carneiro. Em Da Cor do Pecado (2004), Abelardo (Caio Blat) era humilhado pelos seus irmãos por conta seu jeito afeminado, até se tornar um lutador e engatar um romance com Tina (Karina Bachi). Em Cobras & Lagartos (2006), foi a vez de Tomás (Leonardo Miggiorin) “mudar” a orientação sexual após se envolver com Sandrinha (Maria Maya). Já na recente Segundo Sol (2018), Maura (Nanda Costa) se apaixonou por Ionan (Armando Babaioff) mesmo depois de ter sido expulsa de casa por se revelar lésbica.

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Daniel RibeiroDaniel Ribeiro
Daniel Ribeiro cobre televisão desde 2010. No RD1, ao longo de três passagens, já foi repórter e colunista. Especializado em fotografia, retorna ao site para assinar uma coluna que virou referência enquanto esteve à frente, a Curto-Circuito. Pode ser encontrado no Twitter através do @danielmiede ou no [email protected].