Com as reprises de A Escrava Isaura e da saga de Os Mutantes, o nome de Tiago Santiago voltou a ficar em evidência na TV. O autor ajudou a transformar a dramaturgia da Record em uma arma potente contra a hegemonia da Globo nos anos 2000, mas hoje colhe os frutos de seus trabalhos distante da tela que o consagrou.
VEJA ESSA
Em entrevista exclusiva ao RD1, o autor relembra sua passagem pela emissora dos bispos e conta histórias inéditas dos bastidores, como a tentativa de emplacar o primeiro beijo gay na dramaturgia e a orientação para que o candomblé não fosse mostrado em A Escrava Isaura.
Apesar da forte interferência da Igreja Universal nas novelas da Record nos dias de hoje, Tiago aponta uma evolução em temas polêmicos. “Hoje, tanto o Papa Francisco como o Bispo Macedo já acenaram com aceitação para homossexuais”, diz.
O escritor também comenta sobre suas passagens por outras emissoras e faz uma revelação: ele tentou emplacar as sinopses de Prova de Amor (Record, 2005) e Amor e Revolução (SBT, 2011) na Globo, durante os anos em que foi contratado para ser colaborador de outros autores. Santiago revela que ainda guarda outras tramas inéditas criadas naquela época.
Confira o bate-papo na íntegra:
RD1: Com as reprises de suas novelas em alta, você acha que a Record pode repensar sobre a própria dramaturgia? A Escrava Isaura teve uma produção modesta e mesmo assim foi sucesso em todas as suas exibições…
TS: Nos tempos atuais, produções menores fazem todo o sentido.
RD1: Os Mutantes ainda faz sucesso entre o público, mas também é alvo de memes nas redes por cenas hoje talvez consideradas bizarras, como a do sapo gigante. Na sua avaliação, como essa saga envelheceu?
TS: A trilogia dos Mutantes sempre buscou o humor, o entretenimento, mensagens de amor, otimismo, fé e bem estar. Por isso, vai continuar a fazer sucesso ainda durante muitos anos. Os memes mostram o quanto o grande público se diverte com os Mutantes.
RD1: Você vem demonstrando nas redes sociais um desconforto com os cortes feitos na reprise de Os Mutantes. O que te incomoda na edição?
TS: Quem vem demonstrando desconforto é o grande público que assiste e reclama comigo pelas redes sociais. Cortar e reeditar a novela, com pedaços de diferentes capítulos, sem dar continuidade a algumas tramas, é como cortar e trocar pedaços de uma música. Acaba virando bagunça e reflete na audiência.
RD1: Você foi talvez o último autor a abordar com sucesso o realismo mágico na TV. Este gênero, no entanto, parece não atrair mais atenção do público, visto pelos fracassos de Saramandaia (2013) e O Sétimo Guardião (2018). Ainda há espaço para este tipo de novela?
TS: O realismo mágico produziu grandes novelas. Com certeza, valeria a pena investir neste gênero, que tem grande potencial de atração para o público infanto-juvenil.
RD1: Você já tentou emplacar uma novela solo na Globo durante 15 anos, oferecendo diversos propostas que foram recusadas. Algum desses projetos foi aproveitado em seus anos na Record? Ainda há alguma novela pensada naquela época que você ainda não desenvolveu?
TS: Apresentei uns três projetos de novela, nos meus últimos anos, na Globo. Um deles virou Prova de Amor, novela de maior média da Record. Outro virou Amor e Revolução. Tenho algumas sinopses prontas para virar novelas, não apenas daquela época.
RD1: Você assumiu brevemente um cargo de chefia na Record em 2006. Era tipo o Silvio de Abreu de lá. Como foi essa experiência?
TS: De 2005 a 2009, fui consultor de teledramaturgia da Record. Trouxe autores experientes, como Marcilio Moraes, Lauro César Muniz, Ana Maria Moretzsohn. Trouxe grandes diretores, como Alexandre Avancini, Edgard Miranda, Edson Spinello, entre outros. Ajudei a promover novos autores, como Gisele Joras, Cristianne Fridman e Vivian de Oliveira. Ajudei a trazer elenco de primeira grandeza. Nosso trabalho em conjunto levou a Record ao segundo lugar no ranking das emissoras do Brasil.
RD1: Você disse em uma live que um de seus projetos inéditos, O Vale da Lua, terá um elenco majoritariamente negro, caso seja produzido, e que a televisão deve isso ao país. Você acompanha essa discussão sobre representatividade com uma certa autocrítica? Por que isso não era pensado há alguns anos?
TS: Comecei a escalar atores negros como protagonistas, ainda no Você Decide, na década de 90. Minha versão de A Escrava Isaura foi a primeira a mostrar os quilombos. Meus personagens negros descendiam de reis e rainhas e celebravam com orgulho a história da África. Em todas as minhas novelas seguintes, escalei muitos atores negros, sempre com valorização de sua imagem, como juiz, professor, piloto, médico, enfermeira, advogado, modelo, artista etc. Se pudesse voltar atrás, teria feito ainda mais. Num país em que a maioria é não branca, não faz mais sentido ter maioria de atores brancos nas novelas. Falo com toda liberdade, porque eu me sinto mestiço, no sangue e na alma. Quando voltar a escrever novelas, quero sim escalar protagonistas negros e maioria do elenco de cor.
RD1: Em 2011, Amor e Revolução abordou a Ditadura Militar apenas como um fato histórico, mas de alguns anos para cá vem surgindo movimentos que tentam legitimar e minimizar os horrores deste período. Faria diferente nos dias de hoje, sabendo que teria que dialogar com pessoas que pedem a volta do autoritarismo?
TS: Amor e Revolução foi a primeira novela a tratar diretamente da ditadura militar no Brasil. Os horrores do autoritarismo, a tortura, a perda dos direitos, tudo isso foi mostrado, com direito a depoimentos das vítimas das atrocidades, ao fim de cada capítulo. Segui fielmente a cronologia dos fatos e abordei mesmo os erros cometidos pelos guerrilheiros que queriam enfrentar militarmente a ditadura. A democracia venceu, apesar da derrota da guerrilha, e acredito que a Constituição de 88 vai continuar invicta contra os criminosos que tentarem se apoderar da República. Tenho muito orgulho de Amor e Revolução e não faria nada diferente.
RD1: Com a aproximação do SBT com o Governo Bolsonaro, você acredita que há
possibilidade de Amor e Revolução ser reexibida algum dia?
TS: Sim, quando Bolsonaro não for mais presidente. Por enquanto, acredito que não há chances de reprise.
RD1: Você tinha total liberdade artística na Record? Há quem diga que algumas cenas de A Escrava Isaura não foram exibidas por conta da referência ao candomblé…
TS: Tive muita liberdade artística na Record, mas houve pedido para não colocar cenas de candomblé.
RD1: Atualmente há uma interferência da Igreja Universal na dramaturgia da Record. Você acredita que, se ainda estivesse lá, conseguiria produzir sob essa “supervisão”?
TS: Sim. Sempre tive relacionamento bom com todos meus supervisores e superiores hierárquicos em TV.
RD1: Em 2006, a Record o impediu que você desenvolvesse um casal gay na novela Prova de Amor. Na época você disse que era apenas uma preocupação com a Classificação Indicativa, mas isso foi entendido como um “aconselhamento” da IURD. Como foi esse bastidor?
TS: Desenvolvi uma relação homoafetiva entre os personagens da Fernanda Nobre e da Maria Ribeiro. Cheguei a propor o beijo, mas levantaram esta questão do horário vespertino, da classificação indicativa e a preocupação de como as famílias conservadoras iam reagir, já que havia muitas crianças acompanhando a novela. O casal gay Danilo (Cláudio Heinrich) e Bené (Deo Garcez) aconteceu nas novelas dos mutantes, mas de novo não consegui fazer o primeiro beijo entre eles. Hoje, tanto o Papa Francisco como o Bispo Macedo já acenaram com aceitação para homossexuais, o que faz todo sentido, porque é da natureza, é natural. Tenho orgulho de ter escrito o primeiro beijo homossexual em telenovela, em Amor e Revolução, entre as personagens Marina e Marcela, com as atrizes Luciana Vendramini e Giselle Tigre.
RD1: Você disse recentemente que tem enviado diversas propostas de trabalhos para emissoras de TV, inclusive a Globo. Já teve algum feedback? Quais são os planos para o futuro?
TS: Tenho três roteiros em inglês, que estão circulando aqui em Los Angeles, e espero ter meu primeiro filme produzido em Hollywood, em breve. Escrevi, produzi e dirigi um filme de terror brasileiro, Possessões, com elenco estelar, que ganhou prêmios no Brasil e no exterior, e estou negociando para apresentar primeiro em TV a cabo e vídeo on demand, para depois negociar com alguma TV aberta. Estou sim enviando sinopses para as emissoras, no Brasil, porque estou com muitas saudades de escrever novelas. Com uma carreira de décadas de fenômenos de sucesso, muita experiência, acho que mereço. Meu livro, Vida e Magia, vou lançar até o fim do ano. Os fãs dos Mutantes praticamente me exigem que eu dê continuidade à trilogia, o que devo fazer, em livro ou HQ, ano que vem.
Daniel Ribeiro cobre televisão desde 2010. No RD1, ao longo de três passagens, já foi repórter e colunista. Especializado em fotografia, retorna ao site para assinar uma coluna que virou referência enquanto esteve à frente, a Curto-Circuito. Pode ser encontrado no Twitter através do @danielmiede ou no [email protected].