1940. A novela Além da Ilusão aborda a homossexualidade com a chegada do personagem Leopoldo, vivido por Michel Blois. Um assunto, para a época, um tanto quanto polêmico. Leopoldo sofre calado.
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2022. Oitenta e dois anos depois, o tema segue sendo polêmico. “Ainda em 2022 a problemática do personagem gay ainda é ser gay. Isso é uma questão totalmente heteronormativa achar que a única questão do gay é ser gay. Nenhum personagem gay passa ileso a isto“, desabafa Michel.
Ainda que a dramaturgia se esforce para representar a homossexualidade e todas as questões LGBTQIA+, ainda existe um preconceito “velado” na sociedade. Em Pantanal, por exemplo, Silvero Pereira espera que a história de Zaquieu seja contada de outra forma, no remake escrito por Bruno Luperi. “Não há mais espaço para deboches e piadas”, já declarou o ator em algumas entrevistas.
Jove, interpretado por Jesuíta Barbosa, sentiu na pele o preconceito quando desembarcou na fazenda do pai. Apesar de não ser gay, o personagem, criado no luxo, na cidade grande, foi visto como “delicado demais” pelos peões.
Até quando?
A coluna conversou com o ator Michel Blois, que comemora sua estreia na televisão. Com mais de 40 peças no currículo, foi indicado aos Prêmios “Cesgranrio” e “Botequim Cultural” de melhor ator em 2017 pelo solo “Euforia” de Julia Spadaccini, que deve voltar aos palcos em breve.
Gaúcho, 38 anos, o ator também é fundador dos Coletivos de Teatro “Pequena Orquestra” e “Invisível Cia” e do Coletivo de Dramaturgia “Inventário de Mentiras”. Dirigiu o clipe “About Love” do Dj DUX, escreveu os curtas-metragens “A Festa” e “Romeu ComSorte” onde também atuou e dirigiu. No cinema, fez parte do elenco dos longas “A melhor versão”, de Luiz Felipe Sá (diretor de Além da Ilusão) e Daniel Herz, e em “Tropa de Elite”, de José Padilha.
Confira a entrevista com Michel Blois:
RD1 – Qual a sensação de estrear na televisão com um personagem que pode trazer reflexões tão necessárias nos dias de hoje?
Michel Blois – Estrear na TV já era algo que eu queria faz um tempo. Bati na trave em várias produções e também estive em outras duas produções que caíram inteiras, na sequência. Então, estava ávido por deixar isto pra trás e estrear logo. Alessandra Poggi me presenteou com Leopoldo, um personagem complexo, cheio de subtexto, de sentimentos ocultos.
Um personagem que não se dá o direito de ser quem é. Ele entra na trama muito na defensiva, não sabe em quem confiar, mas trava uma parceria linda com Arminda (Caroline Dallarosa) e então se abre para o amor aos poucos. Infelizmente, ainda hoje, existem muitas pessoas que sentem vergonha, medo ou repulsa do que são, assim como Leopoldo. Essa história não está datada nos anos 1940. Liberdade sexual e de opção sexual ainda é um tabu.
O que você espera da trama do personagem? Acredita que ele conseguirá vencer o preconceito da época e assumir a homossexualidade?
Acho a trajetória do Leopoldo linda. Não imagino o quão pior era, nos anos 1940, falar sobre homossexualidade. Eu, nos anos 1990, tinha pânico deste assunto. Nem sabia como poderia ser feliz. Para mim, não existia a opção de casar, ter um parceiro.
Eu tinha medo de não ter emprego, não ter amigos, ser solitário. Não vislumbrava que existia um mundo. Não sabia onde encontrar os meus iguais. E isso para mim já é apavorante. Imagina nos anos 1940? Acho que se Leopoldo assumir para sua família e amigos já será um passo enorme para a época.
Se vai ter beijo gay ou não…Estamos em 2022 e o assunto ainda gera polêmica. O que você pode comentar sobre isso? Por que acha que a sociedade ainda se escandaliza tanto com a questão?
Tem uma questão anterior a esta que gostaria de comentar. Ainda em 2022 a problemática do personagem gay ainda é ser gay. Isso é uma questão totalmente heteronormativa achar que a única questão do gay é ser gay. Nenhum personagem gay passa ileso a isto. Você entende?
Enquanto não quebrarmos este princípio, enquanto não for corriqueiro ver um triângulo amoroso gay, ou um gay com outra problemática, ainda vamos falar sobre beijo gay. Eu, posso estar enganado, mas acredito que a maioria da população já se sente capaz de torcer por um final feliz de um casal gay, coisa que até pouco tempo atrás seria impossível, e um beijo é a pura consequência disto. Deveria ser naturalizado e não tratado como evento.
Além da novela, você está com outros projetos em produção, certo? Pode contar um pouco sobre, qual seria a temática?
Tenho um filme chamado “A melhor versão” com roteiro da Julia Spadaccini e direção do Daniel Herz e do Luis Felipe Sá (diretor geral de Além da Ilusão) que está finalizado, pronto para percorrer festivais de cinema. Tenho meu solo “Euforia” também de autoria da Julia Spadaccini.
E escrevi um longa-metragem e alguns projetos de séries que estão nas mãos de produtores para captação. Em todos os projetos a temática LGBTQIA+ está presente e na maioria é protagonista. Preciso produzir e escrever conteúdos que contenham a nossa história, nossa trajetória, como comunidade.
Você acredita que com sua arte poderá sensibilizar e contribuir para a educação do povo e acabar com o preconceito?
Eu acredito que com arte a gente se transforma e transforma o outro porque alarga o pensamento, coloca em xeque nossa mediocridade, nossa mente tacanha e excludente. Com a arte abrimos os horizontes, nos transportamos para a realidade alheia, escutamos o outro lado da história. A arte nos elimina medos.
Então sim, gosto de pensar que Leopoldo pode fazer com que várias pessoas se sensibilizem com o sofrimento que causam à uma comunidade inteira, como a LGBTQIA+. Que entendam que amar é bom e que cada um tem o direito de se amar e amar outro independentemente de gênero.
Como foi pra você se assumir gay? Enfrentou os medos e inseguranças como o personagem ou foi um processo mais natural?
Eu desde pequeno sabia que era gay, mas mesmo sendo criado num ambiente acolhedor, como o da minha família, não havia espaço para falar sobre isto. Na escola então nem se fala. Sofri bastante por não me encaixar, tinha raros amigos homens. Era sufocante estar ao lado deles, opressor. Me machucavam psicologicamente e fisicamente. Eles suspeitavam e me torturavam com isto.
Eles sabiam que naquele momento eu não teria forças pra brigar contra um patriarcado. Então assim que terminei a escola vim morar no Rio e fazer teatro. Só aí encontrei um outro ambiente, este sim, acolhedor. Só aqui no Rio me senti solar, bonito, desejado e livre. Consegui me reencontrar.
Aqui tive o conforto de ser quem eu realmente era e fazer o que eu realmente queria. Passado um tempo decidi que não queria viver na minha sombra e contei aos quatro cantos que era gay. Com Leopoldo acho que as coisas são um pouco diferentes, ele tentou uma vida heteronormativa, o esforço dele era pra seguir o padrão. O meu sempre foi me libertar do padrão. Imagino que à época esta era a única alternativa para ele. Era isto ou ser colocado como a escória do mundo.
Fernanda Menezes Côrtes é jornalista, com mais de 20 anos de experiência em assessoria de comunicação, sendo os últimos onze anos voltados ao mundo do entretenimento e da televisão. Trabalhou na comunicação da Globo e do Canal Viva e como assessora de artistas.